19/10/2014 às 14h47min - Atualizada em 19/10/2014 às 14h47min

Construindo a Política de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil

Os antecedentes da formulação e implantação da política de segurança alimentar no Brasil serão abordados sob dois aspectos: a construção do conceito, nos âmbitos internacional e nacional; e a elaboração de um panorama dos padrões de políticas ligadas à alimentação pré-existentes, desde o início do século XX até os anos 2000.

Os Antecedentes da sua Formulação: a construção da noção de segurança alimentar e nutricional do ponto de vista do acesso aos alimentos de qualidade

 

Desenvolvimento da Noção de Segurança Alimentar no Âmbito Internacional

A preocupação da humanidade e dos governos com a disponibilidade de alimentos para a população de seus países sempre foi uma constante. No século passado, assumiu contornos mais precisos na busca por uma política permanente em função das guerras e das carestias ocasionadas pela mesma. O fim da Segunda Guerra Mundial representou um marco na busca por mecanismos mais abrangentes no sentido de garantir o bem estar da humanidade. Assim, ao mesmo tempo em que se discutia a constituição da Organização das Nações Unidas e do Fundo Monetário Internacional, em Hot Springs, em 1943, surgiu também uma proposta de montagem de uma organização multigovernamental para o incentivo à agricultura e à alimentação (Belik, Graziano da Silva e Takagi, 2001). A proposta foi concretizada com a criação da FAO – Food and Agriculture Organization, como organismo internacional para o desenvolvimento da agricultura e da alimentação, em 1945, em Quebec, no Canadá. No documento preparatório da I Conferência da organização,elaborado em 19458, constam as principais concepções do momento que subsidiaram a sua criação. O conceito utilizado na época, influenciado pela democracia liberal norteamericana, é o da “libertação da necessidade” (freedom from want). Um mundo em reconstrução não poderia conviver com a carência dos indivíduos. A democracia liberal defendia que o homem que passa necessidades não é um homem livre (Dean, 2005).

Portanto, para a FAO, libertação da necessidade significava superar a fome e a realização das necessidades básicas para uma vida digna. A FAO nascia, desta forma, “da necessidade para a paz assim como para a libertação da necessidade - os dois são interdependentes”. Para alcançar a libertação da fome, defendia que era necessário disseminar o conhecimento sobre os melhores métodos de produção, processamento e distribuição e o melhor uso dos alimentos.

Em 1952, o brasileiro Josué de Castro, médico, geógrafo, antropólogo e autor de diversos trabalhos sobre o tema da fome, assumiu a presidência do Conselho da FAO, permanecendo à frente da organização por três anos. A noção do alimento como poderosa arma política entre os países surgiu pela primeira vez naquele pós-guerra, frente aos riscos ocasionados pela destruição em massa de campos de produção de alimentos. A alimentação adquiriu um significado estratégico de segurança nacional, impondo a necessidade a cada país de assegurar por conta própria o suprimento da maior parte dos alimentos que sua população consome, inaugurando um conjunto de políticas específicas, entre as quais a formação de estoques de alimentos (Maluf e Menezes,2001).

No início da década de 1970, uma forte crise alimentar veio reforçar esta noção. Em meio a um crescimento acelerado da produção agrícola mundial, houve duas grandes quebras da produção de alimentos, em 1972 e 1974, devido a problemas climáticos, nas principais áreas produtoras. Isto ocasionou uma forte diminuição nos estoques de cereais. Os estoques mundiais de trigo caíram de 50 milhões de toneladas, em 1971, para 27 milhões, em 1973, atingindo o menor valor em 20 anos (FAO, 2000). No mesmo período, duas fortes secas atingiram a África. A primeira ocasionou a morte por fome de cerca de 100 mil pessoas nos países da África Subsahariana. A outra seca atingiu a Etiópia e matou, também por fome, entre 50 mil e 200 mil pessoas, sem que a ajuda alimentar pudesse chegar a tempo.

Paralelamente, o mundo viveu a crise do petróleo, que provocou uma abrupta alta dos preços dos combustíveis, fertilizantes e pesticidas, agravando a crise alimentar. Esta crise alimentar provocou a realização da Primeira Conferência Mundial de Alimentação, promovida pela FAO e pelas Nações Unidas, em 1974. Seus objetivos eram: realizar acordos de políticas e programas para aumentar a produção e a produtividade dos alimentos, especialmente nos países desenvolvidos; ampliar o consumo e a distribuição de alimentos; debater a formação de um sistema de segurança alimentar mundial mais efetivo, que considerasse os estoques de alimentos, as políticas de ajuda alimentar de emergência, e um sistema de comércio internacional mais ordenado (FAO, 2000). Estas preocupações, juntamente com a grave situação conjuntural, fortaleceram a noção inicial de que a questão alimentar de um país estava estritamente ligada à sua capacidade de produção agrícola, idéia predominante na Primeira Conferência Mundial. 

Vale mencionar que a visão mundial predominante no momento, da falta de alimentos ou da ameaça da mesma, deu o suporte ideológico e político necessário para a adoção e disseminação do modelo agrícola de emprego maciço de insumos químicos (fertilizantes e agrotóxicos), sementes melhoradas e máquinas agrícolas, que ficou conhecido como Revolução Verde. Segundo a FAO (2000), entende-se por Revolução Verde um aumento brutal da produção das principais culturas, como milho, arroz e trigo, principalmente durante as décadas de 1960 e 1970. A Revolução Verde contribuiu para que, nos últimos 50 anos, o crescimento da produção agrícola global aumentasse em 1,6 vezes a produção total de 1950. A desigualdade também aumentou brutalmente, pois a distância entre o sistema mais produtivo e o menos produtivo aumentou em 20 vezes nestes 50 anos (FAO, 2000).

 

Para Maxwell e Slater (2003), a noção predominante nos anos 1970 e 1980 estava mais ligada ao conceito de política alimentar, ou mais propriamente, política de assistência alimentar, com ênfase nos aspectos ligados à oferta de alimentos e menos à demanda (ou à sua interdependência) e precede a disseminação do conceito de segurança alimentar. Segundo os autores, um dos primeiros exemplos de política adotada com a visão da assistência alimentar foi o Plano de Combate à Fome no Mundo, da União Européia, em 1981. No entanto, o que se constatou, mesmo com um aumento fenomenal na produção mundial de alimentos, foi a manutenção de condições agudas de fome e desnutrição de grande parte da população mundial.

Com isso, a mudança desta visão para uma ênfase no aspecto da demanda foi rápida e, segundo Maxwell e Slater (2003), teve forte influência de Amartya Sen, com seu conceito de entitlement, elaborado em 1981. Os “intitulamentos” de Sen podem assumir a forma de acesso a bens ou recursos, por meio de canais legais de aquisição: recursos para coletar ou produzir alimentos; recursos que permitem a troca (propriedades, dinheiro, força de trabalho) por alimentos; e o recebimento de doações de alimentos ou de recursos para acessá-los. 

Este conceito amplia, portanto, as formas de acesso à alimentação por parte dos indivíduos, além do simples aumento da oferta dos mesmos. Segundo Sen (1990), a fome deve ser vista como um fenômeno econômico no sentido amplo – incluindo produção, distribuição e utilização de alimentos – e não apenas como reflexo de problemas de produção de alimentos. O autor diferencia os dois tipos de fome e suas causas: a fome (hunger) que ocorre de forma recorrente é, fortemente, um resultado de acessos inadequados a “intitulamentos” de forma contínua; e a fome repentina (famine) o resultado de acesso inadequado geralmente de forma desastrosa e abrupta. Mas, bem antes dos “intitulamentos” de Sen, Josué de Castro já afirmava, em 1968, que “a fome é um produto de estruturas econômicas defeituosas não é um problema de limitação da produção por coerção de forças naturais. É antes, um problema de distribuição”. Suas obras, especialmente a Geografia da Fome, passaram a ser traduzidas em vários países, e demonstraram ao mundo que a fome do Brasil (e também dos demais países) não era causada por fatores naturais, mas devido à desigualdade social.

Dentro deste contexto, o conceito de segurança alimentar passou a incorporar a noção de acesso aos alimentos, ao lado da noção de oferta suficiente de alimentos. Em 1982, a FAO apresenta a definição originada na 8a Sessão do Comitê Mundial de Segurança Alimentar, de que “o objetivo final da segurança alimentar mundial é assegurar que todas as pessoas tenham, em todo momento, acesso físico e econômico aos alimentos básicos que necessitam". Este conceito permanece até os dias de hoje. 

Mais recentemente, agrega-se a este conceito, a preocupação com a qualidade dos alimentos (nutricional, biológica, sanitária e tecnológica) e sua sanidade (não-contaminação biológica, física ou química). Esta noção de alimento seguro foi fortalecida na Conferência 10 Trecho do artigo: A explosão demográfica e a fome no muno”. Publicado na revista Civilittá delle Machine. Conforme: www.josuedecastro.com.br/port/indice.html. Acesso em 31/01/2006. Internacional de Nutrição, promovida em 1992 pela FAO e pela Organização Mundial da Saúde – OMS (Maluf e Menezes, 2001).

Em 1996, mais de dez anos após a I Conferência, a FAO constatou que os objetivos de erradicar a fome no mundo estavam longe de serem alcançados. As estimativas indicavam que, se nada fosse feito, ainda haveria 680 milhões de pessoas famintas no mundo ao redor do ano 2010, mais de 250 milhões na África Subsahariana (FAO, 200511).

Assim, em novembro daquele ano foi organizada a Cúpula Mundial da Alimentação, em Roma, reunindo representantes de 185 países e da Comunidade Européia, com o objetivo de renovar o compromisso global de eliminar a fome e a subnutrição e atingir a segurança alimentar para todas as pessoas, envolvendo os níveis hierárquicos políticos mais elevados de cada país.

Na ocasião, 112 chefes de Estado e de governos e outros 70 representantes de alto escalão, incluindo o Brasil, assinaram a Declaração de Roma, comprometendo-se a envidar todos os esforços para erradicar a fome em todos os países, com a meta inicial de reduzir pela metade o número de pessoas subnutridas até 2015.

 

No início de 2002, a FAO organizou uma nova conferência visando fazer um balanço dos progressos do compromisso com os países signatários, feito nos cinco anos anteriores. Com o nome Cúpula + 5, os técnicos demonstraram nessa conferência realizada em Roma, que a meta fixada para 2015 estaria muito distante de ser atingida, pois a trajetória das políticas de combate à fome não apresentava resultados significativos. Na ocasião, as estimativas mostravam a existência de 816 milhões de pessoas que não consumiam o suficiente segundo os padrões de nutrição. A principal causa para esse fracasso estava no pouco interesse dos próprios mandatários em patrocinar a causa do combate à fome. O pequeno apoio aparecia refletido na presença praticamente nula de autoridades em um evento daquela importância. O diagnóstico geral era de que não havia a chamada vontade política por parte dos governos para eliminar o problema. No âmbito das Nações Unidas, também se criou, em 2000, outra instituição paralela à FAO, que é a Relatoria Especial sobre o Direito à Alimentação na Comissão de Direitos 11 www.fao.org/wfs: Monitoring progress since the World Food Summit, acesso realizado em outubro de 2005.

Humanos. Esta Comissão, responsável por acompanhar o cumprimento dos direitos humanos das Nações Unidas, criou uma série de relatorias, sendo o direito à alimentação, constante no Comentário geral número 12 (“O Direito a uma Alimentação Adequada”), fiscalizado por esta relatoria. Esta iniciativa agrega e fortalece um fator fundamental na formulação da noção de segurança alimentar e nutricional, que é a noção da alimentação como um direito nato de todos, e não apenas como política compensatória, noção hoje ainda pouco incorporada nos países.

No mesmo ano lançou-se, no âmbito das Nações Unidas, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que trata, basicamente, de um compromisso de todas as nações de melhorar a situação sócio-econômica de seus povos. O primeiro objetivo do Milênio é reduzir a fome pela metade até 2015 e a miséria pela metade até 2025. As Nações Unidas incorporaram e reforçaram, assim, a meta da FAO.




Autor: Maya Takagi

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