04/05/2023 às 22h59min - Atualizada em 04/05/2023 às 22h59min

Queijo Artesanal de Leite Cru

Um componente fundamental para a defesa e valorização dos queijos de leite cru é o estímulo a atividades de degustação.

Grupo de Trabalho Slow Food Queijos Artesanais
Conhecendo e degustando os queijos artesanais de leite cru

Um componente fundamental para a defesa e valorização dos queijos de leite cru é o estímulo a atividades de degustação. Degustar um queijo significa observar, analisar e descrever as características que percebemos através dos nossos sentidos ‐ a vista, o tato, o olfato, o paladar (eventualmente também a audição), visando delinear os aspectos organolépticos do produto. A degustação ideal (sobretudo quando envolve um interesse profissional, uma seleção, um concurso) deve acontecer em um local tranquilo, sem muita interferência externa (ruídos, cheiros). No caso de um grupo é importante definir uma metodologia e critérios comuns de análise e de classificação.

Os queijos artesanais de leite cru apresentam uma enorme riqueza e diversidade de sabores. Mesmo quando feitos exatamente da mesma forma e com o mesmo tipo de leite, seus sabores  variam entre as regiões, entre produtores da mesma região, ao longo do ano para o mesmo produtor e ao longo da “vida” de cada peça de queijo produzida. Longe de ser um defeito, esta enorme diversidade e “falta de padronização” é um grande tesouro.

A riqueza de sabores dos queijos de leite é resultado da ação dos microorganismos sobre o leite, ela aumenta e se complexifica com o tempo de maturação (também chamado de cura). Como um “milagre”, um mesmo queijo vai passando por mutações de cor, textura e sabores ao longo de sua vida. Quanto mais fresco o queijo, mais seu sabor se aproxima ao sabor do leite e seus componentes (manteiga, por exemplo). E quanto mais maturado (ou curado) for o queijo maior a complexidade de aromas e sabores que vão surgindo. Para isso, ele precisa “respirar” e não pode estar embalado em sacos plásticos, por exemplo, e cura melhor sobre uma superfície mais porosa (como prateleiras de madeira). Além da riqueza da flora microbiológica presente inicialmente no queijo, a umidade e temperatura ambientes influem fortemente neste processo. Quanto menor a umidade e quanto mais baixa a temperatura, mais lentamente o queijo matura, pois diminui a atividade microbiológica. Em países de clima tropical a maturação se dá de maneira mais rápida que em países de clima temperado, por exemplo. Os queijos de leite cru podem ser mantidos fora da geladeira e terem longos prazos de validade: ficam “curados” ao invés de estragar.

Embora o “trabalho” de cura dos queijos seja feito pelos microorganismos, a maturação é uma arte, que exige saberes, cuidados e atenção. Cada queijo e cada fase de maturação exigem cuidados diferentes. Com alguns cuidados simples, como manter o queijo sobre uma tábua, em local protegido, fresco e arejado, virar o queijo e lavá-lo em água corrente quando necessário, qualquer pessoa pode deixar curar seu queijo de leite cru e ir observando suas mutações.

No entanto, assim como no caso de outros alimentos, o aumento da produção e consumo de queijos industrializados pasteurizados têm levado ao consumo de queijos cada vez mais frescos e a uma perda das habilidades sensoriais de paladar e olfato das pessoas.

Por isso, um dos componentes da campanha em defesa dos queijos artesanais de leite cru é a realização de degustações de queijos, que podem ser feitas em escolas, reuniões de amigos ou familiares, eventos gastronômicos, etc. Através deste trabalho, esperamos estimular um re-treinamento dos sentidos, descobrindo a alegria de comer e desfrutar de diferentes sabores e de se preocupar com a origem dos alimentos, quem os produz e como são processados. Este trabalho é ainda inicial e temos muito que avançar, tanto em termos de conhecimentos sobre degustação de queijos brasileiros quanto da sua maturação.



O que é e por que leite cru?

A microflora lática (bactérias, leveduras, fungos) presente naturalmente no leite, no curral, na sala de ordenha,  no local de produção e armazenamento, é a verdadeira protagonista dos queijos. É o equilíbrio desta flora natural, aliado ao cuidado e à higiene na produção que irão garantir a segurança do ponto de vista alimentar e a particularidade de cada produto. Esta flora é diferente de uma região para outra, de um leite para o outro, de um produtor para o outro e, por isso, ela estabelece uma ligação forte com o território e com o fator humano de onde provém.  O leite é um alimento vivo, no qual  a presença de microrganismos é decisiva para a qualidade e complexidade dos queijos.  O leite cru é o leite tal qual é retirado da vaca através da ordenha, sem ser submetido a qualquer tratamento que vise diminuir a presença de microorganismos. Um dos tratamentos mais conhecidos é a pasteurização, tratamento térmico que  visa reduzir a presença de microorganismos patogênicos, mas que  destroi também a microflora lática.

O queijo produzido a partir do leite cru  conserva as características físicas, químicas,  microbiológicas nutricionais e sensoriais originárias do leite fresco. Se beneficia da propriedade do leite de se autoproteger contra a ação de agentes patógenos de 2 a 3 horas após a ordenha. Os queijos artesanais de leite cru são  formas simples e eficientes de transformação de um produto altamente perecível –  o leite – em produtos seguros e que podem ser armazenados por maior tempo. Os queijos tradicionais de cada região foram se desenvolvendo ao longo dos séculos e são em geral formas bastante eficazes de aproveitamento e conservação do leite, com um baixo uso de energia e insumos externos, resultando em alimentos ricos e seguros.  Os queijos de leite cru são produtos vivos e sua enorme riqueza de sabores está diretamente relacionada com a biodiversidade da flora microbiana que eles contêm.  A riqueza microbiológica presente no leite cru protege o queijo da presença de possíveis microorganismos patogênicos, dado que estes últimos, utilizando o leite para chegar ao seu alvo, são combatidos pelos microorganismos lácteos que estão em seu ambiente natural. Por isso os queijos de leite cru apresentam baixo risco de transmissão de doenças, especialmente  quando feitos em pequena escala e logo após  a ordenha (na própria fazenda ou em locais próximos).

Temos no Brasil queijos artesanais de leite cru  produzidos, comercializados e consumidos regionalmente  de maneira informal, alguns  há mais de cem anos, sem que se haja evidências de problemas de saúde pública. Ao contrário, os queijos tradicionais brasileiros são considerados pelas populações que tradicionalmente os consomem como produtos saborosos e seguros.

A pasteurização do leite antes da elaboração dos queijos é exigida por leis internacionais e nacionais, o que vem impossibilitando a comercialização legal de produtos elaborados com leite cru.  A exigência de pasteurização atende sobretudo à realidade  da indústria, que trabalha com grandes quantidades de leite, recolhido de diferentes produtores, transportado a distâncias maiores e com intervalos de tempo grandes entre a ordenha e o início de produção dos queijos. Nestes casos, a pasteurização é uma forma de corrigir a qualidade da matéria prima, homogeneizar o leite e padronizar os tempos e processos de produção do queijo.

Porém, tratamentos térmicos como a pasteurização produzem efeitos negativos irreversíveis na qualidade do queijo, com a redução da complexidade aromática dos queijos (resultado da ação da flora bacteriana diversificada) e a diminuição do valor nutricional dos produtos (devido à destruição de vitaminas e antioxidantes). Há ainda um desligamento ou redução da ligação com seu território, uma vez que o queijo padronizado não espelha a complexidade da flora e das condições locais, funcionando simplesmente como um substrato para inoculação de uma flora estandardizada e produzida em laboratórios.

A obsessão higienista, que busca uma máxima esterilização dos alimentos, vem forçando ainda os produtores a eliminarem utensílios tradicionais de produção (muitos deles feitos em madeira ou materiais naturais existentes nas regiões produtoras) em detrimento do plástico e do inox. Induz a um uso descontrolado de sanitizantes e outros produtos químicos (em geral permitidos pela legislação), que também reduzem a carga bacteriana do leite, dificultando os processos de coagulação e anulando os efeitos que a flora natural teria na complexidade aromática do produto e na segurança alimentar. Todos esses processos industriais têm como consequência a devastadora eliminação da micro-biodiversidade (diversidade de micro-organismos) e, consequentemente, a perda de sabores e de diversidade dos queijos.

Além disso, a excessiva esterilização dos alimentos vem sendo apontada como causa de diminuição das defesas do nosso sistema imunológico, que hoje exige “complementos alimentares” para substituir nutrientes, vitaminas, lactobacilos, enzimas, ácidos graxos perdidos por processos de hiper-industrialização dos alimentos.  Em países onde é frequente a prática de acrescentar ao queijo fermentos industriais, não se encontram mais as culturas naturais que eram mantidas como herança de família.

As exigências hiper-higienistas da legislação também têm consequências sociais e ambientais: aumentam os custos de produção e o consumo de energia,  assim como exigem maiores investimentos por parte dos produtores, excluindo do mercado formal os produtores de menor escala e mais artesanais.  Os produtos e produtores tradicionais são expressão profunda de nossas tradições, misturam uma forma de arte com uma forma de vida. São cultura, patrimônio e ambiente assimilados, respeitados e valorizados. Representam o sustento e a dignidade de inúmeras populações no mundo todo. Representam a diversidade e complexidade dos alimentos regionais e a saúde e estabilidade de nossas comunidades rurais. Enquanto cidadão e consumidor devemos lutar pelo nosso direito de escolha! Pela liberdade em optar por um produto que provém de uma tradição local, de um saber fazer arraigado na nossa cultura e que é capaz de nos presentear com sensações, sabores e aromas únicos, ameaçados pela homogeneização da indústria de alimentos e por interesses econômicos de poucos.

Portanto, nós chamamos todos aqueles que têm o poder de salvaguardar a diversidade e complexidade de nossos alimentos regionais, assim como a saúde e estabilidade de nossas comunidades rurais, para agir agora e assegurar um marco regulatório apropriado, justo e flexível, assegurar controles sensatos e uma perspectiva positiva em relação ao futuro.

Fonte: 
Grupo de Trabalho Slow Food Queijos Artesanais

Nota do Site Ciência do Leite
Grupo de trabalho queijos artesanais de leite cru: O Grupo de Trabalho Slow Food Brasil Queijos Artesanais – GT Queijos – se formou em setembro de 2011, a partir de um convite para a participação do Slow Food no 1º Simpósio de Queijos Artesanais do Brasil. O GT Queijos tem como norte o Manifesto Internacional do Slow Food e como objetivo realizar ações de mapeamento, divulgação e salvaguarda dos queijos tradicionais de leite cru brasileiros. Reúne associados do Slow Food de diferentes formações e regiões do Brasil, que se interessam em colaborar voluntariamente para salvaguarda da cultura, dos modos de vida e dos saberes envolvidos na produção dos nossos queijos artesanais. Entendemos que a divulgação dessa causa é de grande importância social, cultural e econômica, pois envolve por um lado, milhares de famílias produtoras e por outro tradições alimentares e identidades regionais. O Slow Food tem o papel de chamar a atenção dos consumidores, enquanto co-produtores, para a necessidade de ações em defesa destes queijos e daqueles que os produzem.

As principais frentes de trabalho do GT Queijos são:
– Mapeamento e divulgação dos queijos brasileiros: No Brasil existe uma grande variedade de queijos artesanais de leite cru, na maioria das vezes intimamente ligados à identidade, tradições e história locais. Como se trata de produções em escala muito pequenas, a maioria permanece na informalidade não gerando visibilidade nacional. O GT Queijos desenvolve um trabalho de mapeamento desta diversividade e suas particularidades.
– Promoção de atividades de educação do gosto e degustações: Visando a divulgação e o reconhecimento do valor gastronômico dos queijos artesanais de leite cru, o GT Queijos organiza oficinas de educação do gosto e degustações em eventos.  Para isto desenvolveu uma metodologia específica apresentada no manual Conhecendo e Degustando os Queijos  Artesanais do Brasil.
– Defesa de uma legislação específica para os produtos artesanais: diferenciada da legislação industrial, que respeite o saber-fazer dos produtores e que permita a manutenção das instalações,  equipamentos, embalagens e formas de comercialização  tradicionais.  Esta defesa, que une interesses de produtores e consumidores, está baseada no  direito à liberdade de escolha na compra de produtos artesanais.  
– Promoção da compra solidária dos queijos artesanais: a identificação de bons produtores, com boas práticas de produção, junto com os mecanismos de divulgação, incentivo  a iniciativas de compras diretas da parte de consumidores, chefs de cozinha, etc.

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