28/02/2015 às 18h33min - Atualizada em 28/02/2015 às 18h34min

Queijo de leite cru: exigências regulatórias podem inviabilizar a produção

Recentemente, vi a que foi publicada a 4ª edição da revisa “VISA em Debate: Sociedade, Ciência e Tecnologia“, pelo INCQS, com o apoio da ANVISA.

 

Essa edição, cujo título é ”Vigilância Sanitária e a Promoção da Alimentação Adequada e Saudável: Impasses, Desafios e Perspectivas“, tem como objetivo, contribuir para o debate do tema alimentos e saúde coletiva, divulgar artigos acadêmicos e científicos inéditos que articulem temas multidisciplinares relativos à sociedade, à ciência e à tecnologia aplicáveis à Vigilância Sanitária.

 

Eu dei uma olhada e separei alguns artigos para comentar aqui, começando pelo de hoje, intitulado “O debate em torno de queijos feitos de leite cru: entre aspectos normativos e a valorização da produção tradicional”, das autoras Fabiana Thomé da Cruz e Renata Menasche – o link para o artigo completo estará ao final do post.

 

Segundo as autoras, a comercialização de alimentos tradicionais em mercados formais requer que sejam cumpridas exigências regulatórias que muitas vezes desafiam a comercialização desses alimentos que, na medida em que têm seus processos legalizados, têm comprometidas justamente as características que lhes conferem singularidade e diversidade.

 

A exigência regulatória analisada por elas é o tempo mínimo de maturação de queijos feitos a partir de leite cru, o qual, em diversos países – incluindo o Brasil, é de 60 dias.

 

Aprofundando-se no assunto com base no queijo Serrano, produzido na região Sul do Brasil, as autoras constataram que, tradicionalmente há uma preferência pelo consumo do mesmo após um período de maturação de 15 a 20 dias, estabelecido graças às alterações nas características sensoriais (especialmente sabor e cor) que o tempo de maturação proporciona. Ou seja, os entrevistados alegaram que antes dos 15 dias, o queijo apresentaria ainda sabor de “soro” e que, após esse período, quanto maior o tempo de maturação, mais “forte” o sabor do queijo. Portanto, o tempo de maturação dependeria da preferência do consumidor.

 

Mas se a legislação estabelece um tempo de maturação mínimo de 60 dias, de onde veio essa regra?

 

Os 60 dias estariam associados ao fato de que esse tempo de maturação seria suficiente para eliminar contaminações microbiológicas, entre elas as ocasionadas por Escherichia coli, Salmonela, Staphylococcus aureus e Listeria monocytogenes, além das zoonoses tuberculose e brucelose.

 

Entretanto, segundo as autoras, trata-se de uma exigência definida de modo arbitrário e a partir de poucas evidências científicas, na metade do século passado nos Estados Unidos.

 

Além dos EUA, essa exigência foi adotada  por vários outros países, entre eles o Brasil, que o fez através da Portaria nº 146, de 7 de março de 1996 (MAPA) “Regulamento técnico de identidade e qualidade de queijos”, segundo a qual “Fica excluído da obrigação de ser submetido à pasteurização ou outro tratamento térmico o leite higienizado que se destine à elaboração dos queijos submetidos a um processo de maturação a uma temperatura superior aos 5ºC, durante um tempo não inferior a 60 dias.

 

As autoras destacam que antes da introdução do método de pasteurização, por  Louis Pasteur (~1850), a produção e consumo de queijos feitos de leite cru foram aceitos.

 

Já no início dos anos 1920, várias cidades nos Estados Unidos passaram a exigir a pasteurização do leite fluido e a estimular o consumo de queijo que, à época, era produzido em grandes laticínios, a partir de leite pasteurizado.

 

Somente no final da década de 1940, é que a determinação de um prazo mínimo de maturação para queijos feitos de leite cru foi proposta, pelo FDA, influenciando também vários países da América Latina além da Europa, Austrália e Nova Zelândia.

 

Entretanto, segundo o artigo, nessa época não havia produção nacional significativa de queijos de leite cru, o que justificaria o fato de o FDA não ter feito uma avaliação detalhada de riscos em relação ao uso de leite cru para a produção de queijos, alegando que, baseado nas melhores evidências disponíveis, não era sabido com certeza quanto tempo os queijos deveriam ser maturados de modo a serem seguros, mas que, como nenhum surto envolvendo queijos com mais de sessenta dias de maturação havia sido relatado, a Agência definiu o critério de maturação mínima em sessenta dias, a temperaturas não inferiores a 35ºF (1,7ºC).

 

Dessa forma, críticas em relação à definição desse prazo têm emergido em países europeus, onde é forte a tradição em produzir queijos feitos de leite cru, e também nos Estados Unidos, onde a produção de queijos artesanais vem sendo retomada.

 

Tais críticas fundamentam-se particularmente na imprecisão e arbitrariedade com que o período mínimo foi definido, alegando ainda que a produção natural de ácido láctico no leite cru cria ambiente inóspito para bactérias patogênicas, controlando seu desenvolvimento.

 

Guerra de pesquisas científicas tendenciosas

 

Por um lado, um grande número de artigos científicos parece corroborar a pertinência de tal regra. Entretanto, segundo as autoras, a validade desses estudos é, muitas vezes, questionável.

 

Elas citam como exemplo, uma pesquisa conduzida sob responsabilidade do FDA, que teria confirmadoque, mesmo com mais de sessenta dias de maturação, queijos feitos de leite cru poderiam estar contaminados.

 

Essa pesquisa foi questionada por outra que, por sua vez, evidenciou que na pesquisa encomendada pelo FDA, os pesquisadores haviam inoculado cepas de Escherichia coli em amostras de queijo feito com leitepasteurizado, de tal forma que a bactéria inoculada não teria sido exposta ao ácido láctico naturalmente presente no leite cru, que cria condições inóspitas para micro-organismos patogênicos. Além disso, a quantidade inoculada teria sido muito superior à que poderia, de fato, estar presente durante o processamento ocorrido de modo natural.

 

Estudos como os mencionados, tanto em posição de condenar quanto de defender queijos feitos de leite cru, mais do que trazer evidências científicas, demonstram a parcialidade presente em torno do assunto.

 

Nesse quadro, o governo da Nova Zelândia propôs, por meio do órgão responsável pela segurança dos alimentos — New Zealand Food Safety Authority (NZFSA) —, um levantamento de pesquisas que associassem evidências de efeitos adversos relacionados ao consumo de produtos lácteos não pasteurizados.

 

Com base nos artigos avaliados, os autores indicaram não ser possível demonstrar forte relação entre o consumo de leite cru ou produtos lácteos feitos de leite cru e bactérias patogênicas, havendo uma relação moderada.

 

Porém, outros autores alegam que o levantamento não apresenta dados provenientes de produtos lácteos feitos de leite pasteurizado, comparação que poderia indicar que, se houver contaminação pós-pasteurização, os riscos serão ainda maiores do que em leite cru ou produtos feitos a partir de leite cru, pois, nesse caso, não haveria o positivo controle de patógenos realizado espontaneamente por micro-organismos como os Lactobacilos, por exemplo.

 

A saída encontrada pela Europa

 

Diferentemente dos Estados Unidos, a União Europeia adota, desde 1992, regulamentações com base na análise de riscos e princípios de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC), permitindo a comercialização de queijos de leite cru, independentemente do tempo de maturação. Mas, em contrapartida, passou a exigir o emprego de controles baseados nos princípios de APPCC. A partir de então, os cuidados de higiene, desde a alimentação e saúde do rebanho até as etapas finais de produção e distribuição e comercialização, passaram a ser  cuidadosamente seguidos e documentados.




Autor: Evelisse Canassa

Referências bibliográficas: 

Clique aqui para ler o artigo publicado no revista VISA em Debate 4ª ed.: O debate em torno de queijos feitos de leite cru: entre aspectos normativos e a valorização da produção tradicional
http://www.visaemdebate.incqs.fiocruz.br/index.php/visaemdebate/article/view/408


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