19/10/2014 às 14h56min - Atualizada em 19/10/2014 às 14h56min

Construindo a Política de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil - Parte 8

As Perspectivas – o que fazer?

Frente às disputas e indefinições em relação às políticas sociais, especificamente em relação ao combate à fome, verifica-se hoje um risco de retorno à situação passada: a fragmentação de programas, notadamente entre a transferência de renda, as ações de segurança alimentar, as ações nutricionais, as ações estruturais de geração de emprego e renda e o Programa de Aquisição de Alimentos. Este último ainda encontra-se sob risco de fragmentar-se ainda mais, em suas três modalidades, já que a gestão de cada uma tem sido feita de forma separada: a compra direta é gerenciada pela Conab, a compra local é realizada por meio de convênios com Estados e Prefeituras e gerenciadas por um Departamento da Sesan, e a compra de Leite é realizada por meio de convênios com os governos estaduais, sendo gerenciado por outro Departamento da Sesan. Não se vislumbra uma política nacional de SAN implementada de forma integrada pelos ministérios afins. Desta forma, nas ações específicas de SAN acabam prevalecendo as ações locais, como os Restaurantes Populares, os Bancos de Alimentos e as Hortas Urbanas. As instâncias de controle social são mantidas apenas formalmente, sem ações diretas de incentivo e capacitação. O Fome Zero passa a ser uma estratégia ou uma somatória de programas que não se articulam na ponta nem na formulação.

O Bolsa-Família tende a se tornar um Programa autônomo, onde o fornecimento do benefício para o maior número de famílias passe a ser um fim em si mesmo, enquanto tenta-se ampliar a articulação com as ações complementares, ainda com abrangência restrita. O que restou da tentativa de se implantar a política de segurança alimentar e nutricional é o Consea, que é um órgão de articulação da sociedade civil com o governo, mas não um órgão de governo. Sua atuação tem sido dinamizada e sua principal meta é a aprovação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, que objetiva tornar permanente e obrigatória a implantação de um Sistema Nacional de SAN (Sisan), nos moldes do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social.

Segundo o Projeto de Lei da Losan, o Sisan é integrado por órgãos da União, Estados, municípios e instituições privadas afetas à SAN, e que manifestem interesse em integrar o Sistema, que tem por objetivos “formular e implementar políticas e planos de segurança alimentar e nutricional, estimular a integração dos esforços entre governo e sociedade civil, bem como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da segurança alimentar e nutricional no País”. Fazem parte do Sisan, também: a Conferência Nacional de SAN, que será responsável pela indicação ao Consea das diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de SAN; o Consea, como órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República; e a Câmara Interministerial de SAN, integrada por Ministros e Secretários especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da SAN, encarregada pela elaboração da Política e do Plano Nacional de SAN e por coordenar a sua execução.

Desta forma, espera-se que a sua implantação faça com que o tema siga um caminho semelhante aos dos setores da Saúde e da Assistência Social. No entanto, estes dois processos tiveram um caminho anterior bastante longo de construção e consolidação. Para avaliar a sua potencialidade, é necessário avaliar brevemente estas experiências.

O setor da saúde pode ser considerado pioneiro na construção do desenho institucional dos Conselhos nos três níveis de governo, e é o setor mais enraizado no país. A origem da institucionalização da política participativa da saúde está relacionada ao processo de descentralização da política da saúde no país. Segundo Ugá et al. (2003), este começou a se estruturar já ao longo da década de 1980, apesar de ser definido na Constituição de 1988 e na legislação infraconstitucional subseqüente (lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, normas e portarias regulamentadoras). Com a institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do início dos anos 90, os municípios foram assumindo o papel de atores estratégicos, dada sua competência constitucional na prestação de serviços e atendimento à saúde. Os Conselhos de Saúde foram instituídos como parte integrante do SUS , na lei 8.142, de 1990, com caráter obrigatório nas três esferas governamentais (Noronha et al., 1997), e são compostos por representantes do governo, dos prestadores de serviço, dos profissionais de saúde e dos usuários, sendo estes últimos com representação paritária em relação à soma dos demais. Os Conselhos têm caráter deliberativo na “formulação de estratégias e controle sobre a execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros” (Lei 8.142, de 1990).

Carvalho (1997) aponta que sua origem está nas lutas comunitárias por saúde dos anos 1970: “os Conselhos de Saúde são a expressão institucional de uma das idéias fundadoras da Reforma Sanitária: a participação da sociedade nas políticas e organizações de saúde”. Este movimento, juntamente com a emergência dos movimentos sociais urbanos, era parte de uma contestação frontal ao governo do regime militar, identificado com práticas excludentes e permeado por interesses privados. A proposta, então, originavase por uma necessidade de confrontar e controlar o Estado. Na Assistência Social, a discussão sobre a construção da Política Nacional também remonta aos anos 80, concretizando-se com a implantação da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (Lei 8.742 de 07 de dezembro de 1993), tendo a descentralização e a participação como diretrizes estruturantes.

Os Conselhos estaduais e municipais passaram a ser obrigatórios para recebimento dos recursos do Fundo de Assistência Social, e também para o cadastro das entidades, necessário para recepção de recursos federais. Cabe, assim, aos Conselhos, a aprovação da destinação dos recursos e a fiscalização do seu repasse e utilização, além da aprovação das entidades a serem cadastradas. Trata-se, portanto, de conselhos de caráter deliberativo. Carvalho (1997) vê uma superestimação da margem de efetividade dos Conselhos como arenas decisórias, quando se alimenta a miragem de um Estado neutro, possível de ser “corrigido” e conduzido pelos segmentos com espaço nos processos decisórios. No entanto, diante da baixa responsividade na satisfação das demandas apresentadas, há uma redução das expectativas e o esvaziamento dos conselhos. Para Carvalho (1997), os Conselhos não governam (se governassem deixariam de ser sociedade civil e passariam a ser governo), mas estabelecem os parâmetros do interesse público para o governo. Não decidem quais políticas e ações serão executadas, mas decidem se correspondem ou não ao interesse público. Entre os seus papéis inovadores, podem alargar o padrão de recepção e processamento de demandas, examinar e acolher demandas, compatibilizar interesses e chancelar uma agenda setorial “de interesse público”. Assim, “os Conselhos de Saúde são instâncias públicas de formação de opinião e vontade política, muito mais do que instrumentos do governo ou da sociedade. Atuam na tematização e formulação da agenda pública, muito mais do que na sua execução, na medida em que concedem ou negam a chancela de “interesse público” às demandas e interesses específicos ali apresentadas”.

Verifica-se que, em qualquer caso, há necessidade de um interlocutor privilegiado dentro do governo, que tenha expertise no assunto e atribuição legal para encaminhamento das ações de interesse público. O modelo da Losan não é exatamente o mesmo dos setores da Saúde e da Assistência Social, pois o Consea optou pelo caráter de aconselhamento e articulação à Presidência e não de caráter deliberativo vinculado a um ministério setorial. Isso porque entende que a Segurança Alimentar é uma política multisetorial e não deve estar vinculada a um setor, ou a um Ministério, sob o risco de perder a capacidade de articulação. No caso, a proposta é substituir um ministério setorial por um Comitê Interministerial do governo, como interlocutor privilegiado. Acredita-se que as ponderações de Carvalho (1997) sejam válidas também para este modelo, assim como a necessidade de interlocutores com atribuições legais e de fato para exercer este papel.

Mas qual será o melhor modelo institucional? Os países latinoamericanos que têm debatido a instituição de uma Política de Segurança Alimentar tem, como ponto de partida, a preocupação com a oferta de alimentos e a proteção de seus agricultores. É o caso do México, que também está debatendo a instituição de uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar. Segundo a versão preliminar da “Ley de Planeación para la Soberanía y Seguridad Agroalimentaria y Nutricional”, da Comisión de Agricultura y Ganadería do Palácio Legislativo, versão de novembro de 2005, “es urgente y prioritario el establecimiento de un marco jurídico que dé certidumbre a las políticas agropecuarias y agroalimentarias de México, como base de la soberanía y seguridad alimentaria y nutricional de la nación mexicana”.

Os programas de segurança alimentar da Venezuela também têm um forte componente voltado para a oferta de alimentos. Segundo Llambí (2005), “el Plan Nacional de Desarrollo 2001-2007 ratificó como objetivo prioritario de la política de seguridad alimentaria la autosuficiencia del país em relación a la oferta de alimentos, y centró su atención em la creación de reservas para una lista de productos definidos como sensibles”. Assim, verifica-se que a institucionalidade destes países deve estar fortemente centralizada nos respectivos Ministérios da Agricultura e Pecuária.No Brasil, acredita-se que este não é o caso, pois já foi colocado que o problema da oferta de alimentos para segurança alimentar já foi superado nas décadas passadas, e hoje o Brasil é um dos principais exportadores de produtos básicos do mundo. Os problemas agropecuários têm se resolvido no campo setorial do próprio Ministério da Agricultura. Assim, a proposta institucional do país foi distinta. Avalia-se que os avanços ocorridos na implantação de ações que fortalecem a segurança alimentar foram possíveis, no primeiro ano, devido à existência de um Ministério setorial específico, que servia como formulador e executor de políticas antes inexistentes, com orçamento e autonomia que conferiram maior agilidade, apesar da pouca estrutura em termos de pessoal, e que também efetivava a articulação na execução de alguns programas, no nível federal, estadual e municipal.

Nos anos seguintes, verifica-se que o modelo inicial adotado manteve suas características. A manutenção das políticas específicas foi possível em grande parte devido ao modelo inicial adotado, com recursos disponíveis de R$ 1,8 bilhão. Isto representou, em termos de recursos, o que houve de “novo” na área de SAN no governo. Vale lembrar a grande dificuldade que o Consea de 1993 teve para a inclusão de recursos para SAN no orçamento e para a liberação orçamentária. Como o orçamento tem uma certa rigidez (ou seja, o orçamento do ano seguinte de cada pasta e de cada programa de cada pasta é definido em função daquilo que foi gasto no ano anterior), a criação do MESA possibilitou que estes recursos permanecessem nos anos seguintes. No caso, a parte do PCA, que significava o maior volume dos recursos do Bolsa-Família (R$ 50,00 em R$ 63,00, em média, por família), foi incorporado a este e ampliado. No entanto, verificou-se que houve uma limitação em termos de coordenação de outros ministérios.

A existência do Consea, neste contexto, foi fundamental para manter aceso dentro do governo o compromisso com a política de segurança alimentar e nutricional, como meta transversal e estratégica, ainda que em segundo plano, e também a cobrança constante em torno na manutenção de formas de controle social nos programas sociais, em especial, no Bolsa Família. Neste sentido, em um primeiro momento, até a consolidação do tema nas estruturas do governo, considera-se importante a permanência do Consea da forma atual, como órgão de assessoramento da Presidência, fato que poderá ser viabilizado com a aprovação da Losan. É importante que se diga que sua força política será tanto maior quanto mais independente do governo, mais radicado nas demandas concretas da sociedade civil, e mais propositivo e efetivo for o Conselho no sentido de balizar a ação do governo na área.

Conforme abordado anteriormente, são necessárias também instâncias de coordenação e de execução dentro do poder executivo, já que o Consea, como órgão de representação e controle social, não substitui o papel do Estado. Neste caso, avalia-se que há duas alternativas institucionais: a primeira, presente na Losan, é manter como interlocutor e coordenador da Política de Segurança Alimentar e Nutricional do governo uma instância não setorial e com nível hierárquico superior aos ministérios setoriais executores. No caso, a Casa Civil seria a instância que preenche estes requisitos, já que sua atribuição é exatamente a de coordenar a ação de governo.

No entanto, frente às inúmeras atribuições de um Ministro-chefe da Casa Civil e às diversas outras prioridades de governo, inclusive a área social como um todo, considera-se necessária uma instância técnica específica de acompanhamento e assessoramento para as tomadas de decisões diárias na Casa Civil ou em um órgão específico. No caso deste modelo, amplia-se enormemente a necessidade de um compromisso claro de que a Segurança Alimentar seja uma meta prioritária de governo. Caso contrário, os riscos de uma maior instabilidade e lentidão nas decisões são bastante grandes. Esta alternativa não elimina a necessidade de órgãos de execução específicos, como a Sesan dentro do MDS, e a CGPAN no Ministério da Saúde.

A questão que esta alternativa não resolve é: como fica a articulação da segurança alimentar com as demais políticas sociais? Ela é subordinada ou subordina as demais? A importância desta questão reside no fato de que há um sombreamento quando se fala em políticas estruturais de superação da vulnerabilidade, que abrange toda a área social. A alternativa institucional que resolve conceitualmente esta questão é privilegiar o tema do acesso à alimentação de qualidade como um setor específico e permanente dentro da política social do governo. A justificativa para isto seria a necessidade de tratar a alimentação como um direito social, ao lado da saúde, educação, trabalho e assistência social, retomando e completando, assim, a noção de seguridade social que foi estabelecida na Constituição de 1988. Isto significa que, assim como o acesso universal à saúde e à educação se dá por meio da oferta de serviços adequados para a população, o setor da alimentação também deve prover os serviços ligados à promoção da alimentação de qualidade. A questão da coordenação seria resolvida no âmbito mais amplo da política de seguridade social do governo, tendo a segurança alimentar como uma de suas metas transversais. No entanto, para esta proposta vingar, é necessário que os titulares das pastas da área da seguridade social tenham um entendimento de seu caráter complementar, atuando de forma pactuada e não concorrente, o que é um desafio enorme quando de trata das disputas políticas.

A formulação, implantação e o acompanhamento das ações específicas de segurança alimentar e da política alimentar no sentido mais amplo poderiam ser exercidos por um Ministério, por uma companhia, como a Conab, ou um instituto, nos moldes do antigo INAN, sempre permeados e moldados pelos interesses e visões expressos da sociedade civil, no âmbito do Consea. Qualquer caminho institucional que seja escolhido, o desafio maior é enfrentar os dilemas e disputas apontados, e definir claramente qual a posição de governo. Para que o governo seja condizente com a prioridade à segurança alimentar e nutricional, são necessários: um posicionamento de que o combate à fome é estrutural e emergencial ao mesmo tempo; uma articulação interministerial em torno da segurança alimentar e nutricional, com a definição clara de quem deve coordená-la; e uma proposta clara para a política social, que é mais ampla do que um programa de transferência de renda. É fundamental, também, recuperar e fortalecer o discurso do direito à alimentação, das políticas estruturantes associadas às ações emergenciais e do controle social efetivo como forma de ampliação da cidadania. Caso contrário, aumenta-se o risco de dar razão às críticas de que as políticas sociais têm objetivos eleitorais.

O que se verifica, no entanto, é um padrão de coordenação do governo que estimula estas disputas conceituais. O Partido dos Trabalhadores, como é conhecido, tem uma prática de decisão das suas principais teses, estratégias e programas a partir da disputa (no sentido positivo) interna. Os grupos apresentam suas teses, suas defesas, e há uma forma de decisão mista: por votação e pela busca de consensos. No governo, parece que esta forma de decisão foi reproduzida, em outros termos. Há espaço para disputar as idéias, e o Presidente, no seu papel de chefe maior da nação, atua como árbitro à medida que as questões tomam vulto. Suas decisões são, naturalmente, permeadas pelas opiniões de assessores e ministros próximos, e também pela sua sensibilidade em relação às demandas da sociedade. Alguns exemplos que ilustram bem estes fatos são as disputas entre Casa Civil e Ministério da Fazenda pela liberação de recursos, ou do Meio Ambiente com a Agricultura, na questão dos transgênicos.

Desta forma, há espaço também para a sociedade civil disputar, como diz o Presidente do Consea. No entanto, deve-se estar disposto a aceitar os rumos, que não estão dados a priori. Esta é uma interpretação que pode explicar as marchas e contra-marchas da Política de Segurança Alimentar e de outras propostas em andamento. Esta forma de gestão, no entanto, não foi compatível com a proposta original do Programa Fome Zero que partia de um desenho já elaborado e acordado, envolvendo várias decisões que descontentavam determinados grupos.




Autor: Maya Takagi

Referências bibliográficas: 

Glossário de Termos Utilizados:
Fome: insuficiência aguda e permanente de alimentos para satisfazer as necessidades energéticas mínimas das pessoas
Desnutrição ou deficiências nutricionais: doenças que decorrem do consumo alimentar insuficiente em energia e nutrientes ou do inadequado aproveitamento biológico dos alimentos ingeridos – geralmente motivado pela presença de doenças, em particular doenças infecciosas
Pobreza: condição de não satisfação de necessidades humanas elementares como alimentação, moradia, vestuário, educação, assistência à saúde e de privações de capacidades para obtenção de renda, interação e pertencimento social, conhecimento e liberdade de expressão.
Indigência: Condição específica de pobreza na qual o indivíduo/família não tem recursos suficientes para adquirir o valor de uma cesta de alimentos com quantidades energéticas mínimas ou recomendadas.
Obesidade: Excesso de peso ocasionando distúrbios metabólicos. Geralmente está associado a alimentação inadequada e a baixa atividade física.
Insegurança Alimentar: situação em que o indivíduo não tem acesso regular e permanente à alimentação de qualidade ou teve dificuldade em algum período do ano de conseguir alimentar-se adequadamente.


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