29/01/2012 às 09h07min - Atualizada em 29/01/2012 às 09h07min

Biotecnologia na Indústria de Alimentos

A indústria de alimentos é uma associação complexa e ampla em diversas atividades. Seu principal objetivo é a produção de alimentos saudáveis, saborosos, seguros e disponíveis. Os componentes de tais atividades incluem (1) o aprimoramento e desenvolvimento de variedades de animais e, sobretudo, de plantas, e maior eficiência na agricultura ecologicamente sustentável e altamente produtiva, (2) o processamento dessas matérias-primas para produzir alimentos estáveis, (3) a distribuição dos alimentos até o consumidor final com todas as garantias de um produto seguro, nutritivo e saboroso.

As plantas e os animais produzidos atualmente pela agricultura moderna são o resultado de mais de 10.000 anos de modificação e refinamento genético, que começou quando o homem usou pela primeira vez o cruzamento entre as espécies, selecionando as plantas e os animais melhores, mais vigorosos, mais adaptados ou mais resistentes a doenças e pragas, sempre com o intuito de obter maior produtividade. A intervenção do homem envolveu o que poderia ser chamado de um tipo primitivo de engenharia genética. Os produtos provenientes desses cruzamentos naturais entre espécies foram empregados por milhares de anos e muitos dos alimentos consumidos atualmente são derivados dessa tecnologia. Ao se fazer um cruzamento convencional, a planta filha carrega 50% do genoma (DNA) de cada um dos pais, uma quantidade de ácidos nucléicos significativa quando comparada com a introdução de um gene específico conhecido utilizando as técnicas de Engenharia Genética. Geralmente, essa transferência envolve um ou dois genes que representam apenas 0,00022% de DNA no caso, por exemplo, do gene da resistência ao ataque de insetos (toxina Bt – Bacillus thuringiensis) inserida no milho; no caso da inserção de tolerância ao herbicida em soja, os genes representam 0,00018%.

Tão importante quanto a utilização de plantas e animais pela indústria de alimentos é o emprego de microorganismos considerados GRAS (Generally Recognized as Safe), ou seja, totalmente seguros para o homem e para os animais, assim como os insumos por eles produzidos, que são amplamente empregados em diversos processos industriais. Outro objetivo não menos importante do emprego dos microrganismos está relacionado à saúde humana. Como exemplo, podem ser citados os produtos pré e probióticos, cuja importância tem crescido muito nos últimos anos. Os alimentos probióticos contêm bactérias lácticas vivas, presentes mais freqüentemente em alguns leites fermentados, que competem com a flora intestinal patogênica e oportunista, garantindo o bom funcionamento desse órgão e auxiliando no combate a várias doenças. Os prebióticos são compostos que promovem o crescimento de bactérias probióticas. Dessa forma, fica claro que a biotecnologia não está direcionada apenas à produção de alimentos, mas está sendo também uma importante ferramenta para suprir a demanda do consumidor por um produto seguro e saudável.

A biodiversidade pode ser definida como a variedade e a variabilidade existentes entre organismos vivos e as complexidades ecológicas nas quais elas ocorrem, podendo ser entendida como uma associação de vários componentes, tais como: ecossistema, comunidade, espécies, populações e genes em uma área definida. É responsável pelo equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas e fonte de imenso patrimônio genético e, por isso, fundamental para a seleção e o melhoramento dos seres vivos. Ela é a base das atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais e, também, para a estratégica indústria da biotecnologia. Estima-se que a biodiversidade inclua 300 a 500 mil espécies vegetais e, dessas, cerca de 30 mil sejam comestíveis. O processo de domesticação e a seleção artificial imposta pelo homem desde os primórdios da agricultura têm contribuído para a perda da biodiversidade, sendo fundamental sua preservação por meio dos bancos de germoplasma.

O homem tem explorado uma parcela muito pequena da biodiversidade existente no planeta, pois domesticou, na sua existência, somente cerca de 100 a 200 milhares de espécies vegetais e, atualmente, menos de 15 suprem a maior parte da dieta humana. Ex: arroz, trigo, milho, sorgo, cevada, beterraba, cana-de-açúcar, batata, mandioca, inhame, feijões, soja, amendoim, citros e banana. No caso dos microrganismos, cerca de 70.000 espécies de fungos foram até hoje descritas, ou seja, menos de 5% das possivelmente existentes entre as quais já existem muitas de grande importância, como as que entram na fabricação de alimentos (incluindo bebidas), de ácidos orgânicos, de fármacos e inúmeros outros produtos.

A tecnologia para geração de animais transgênicos, apesar de já ser rotineiramente empregada em laboratórios comerciais e de pesquisa em muitos países, há duas décadas, ainda é recente no Brasil. As aplicações da tecnologia transgênica são inúmeras e em diferentes campos de atuação: em pesquisa básica, no estudo da regulação e função de seqüências genéticas específicas; em pesquisa biomédica, na criação de modelos animais de doenças humanas (entre elas, cardiovasculares, auto-imunes, neurológicas, AIDS e câncer). Animais com mutações, que mimetizem as principais características de uma determinada anomalia, são um passo fundamental na pesquisa de doenças genéticas. Tais modelos animais permitem o exame detalhado da fisiopatologia da doença, além de servirem para delinear novas formas de tratamento, desenvolvimento de testes-diagnósticos, agentes terapêuticos inovadores e em terapia gênica. 

A aplicação na indústria biotecnológica é representada pela produção de proteínas recombinantes humanas, como enzimas, hormônios e fatores de crescimento, por animais domésticos que funcionam como biorreatores (exemplo: produção de proteínas no leite através da expressão dirigida às glândulas mamárias). Finalmente, o aspecto mais controverso do uso dessa tecnologia envolve o melhoramento genético de animais domésticos de interesse econômico em larga escala, decorrente de modificações da anatomia e fisiologia do animal, como, por exemplo, aumento de massa corpórea, diminuição de gordura, resistência a doenças, maior produção de carne, de leite, etc.

As perdas anuais da produção agrícola mundial são da ordem de 37%, sendo que 13% devem-se a ataques de insetos. Por essa razão, as plantas chamadas de primeira geração foram as obtidas pela introdução de um gene que confere características de resistência a herbicidas, insetos e pragas. Esta fase teve como objetivos imediatos a diminuição das perdas da produção agrícola no campo, a redução dos custos de produção para o agricultor (insumos e defensivos agrícolas e combustível), e, conseqüentemente, em maior disponibilidade de alimentos e custos menores também para o consumidor final.

As plantas geneticamente modificadas de Segunda e Terceira gerações contêm alterações genéticas que visam ao enriquecimento nutricional, à melhoria das qualidades tecnológicas, à adaptação específica a diferentes ambientes. Ex: plantas resistentes à alta salinidade, geada, seca, eliminação de fatores antinutricionais presentes em vários tipos de alimentos. Nesse caso, as alterações genéticas são mais complexas, já que envolvem um detalhado conhecimento do metabolismo da planta. As aplicações são diversas: Óleos vegetais (milho com maior quantidade de óleo, tornando o processo de extração mais eficiente; canola e soja contendo menos ácido linoléico e mais ácidos oléico e palmítico, aumentando a vida de prateleira); Proteínas: (trigo com maior quantidade de glutenina, que aumenta a elasticidade da massa feita de farinha de trigo); plantas com maior quantidade de glicina, rica em lisina, e batatas-doces capazes de armazenar proteína.

A aplicação direta de microorganismos vivos tem, como principais objetivos, a produção aumentada de ingredientes e propriedades melhoradas de culturas "starter" (iniciadoras de uma fermentação), formação de flavour (sabor e aroma) e preservação, pela produção de substâncias naturais que inibem o crescimento de organismos patogênicos e deterioradores.

Leveduras, fungos filamentosos e bactérias podem ser usados para a obtenção direta de alimentos, ou seja, transformam uma matéria-prima, fazendo parte daquele alimento. Como exemplo clássico, podem-se citar os alimentos derivados da fermentação do leite (iogurtes e queijos), carne (salame) e vegetais (picles) por bactérias lácticas. As leveduras também são aplicadas diretamente como fermento na indústria de panificação, bebidas (cerveja e vinho) e como suplemento alimentar e os fungos, além de serem utilizados na fermentação de diversos tipos característicos de queijos (gorgonzola), são também consumidos diretamente (champignon e shitake). Devido ao fato de os microrganismos permanecerem viáveis, isto é, vivos nos alimentos até seu consumo, existem limitações quanto às metodologias de engenharia genética que podem ser usadas. A maioria dos produtos lácticos contém altos níveis de bactérias viáveis, uma vez que, por terem efeito benéfico nos organismos, necessitam chegar viáveis ao intestino. Nesse caso, não é permitida, por exemplo, a utilização de marcadores de resistência a antibióticos.

Os microorganismos têm sido estratégica e conscientemente melhorados geneticamente para a produção de metabólitos destinados à aplicação industrial farmacêutica, alimentícia, de papel, têxtil, química, petrolífera, ambiental e de mineração, dentre outras. Um exemplo é a penicilina, cujo microrganismo Penicillium notatum, desde a sua descoberta e caracterização em 1929/1940, foi submetido a diversos eventos de mutação para que sua produção fosse otimizada, a fim de atender a demanda crescente de mercado para um dos primeiros produtos biotecnológicos. Com conhecimentos absorvidos nestas últimas décadas nas áreas de engenharia de processos e microbiologia, bioquímica, genética, da genômica e proteômica, diversos processos industriais se ampliaram e novos metabólitos foram descobertos.

A principal razão para utilizar microrganismos na produção de compostos que poderiam ser isolados de plantas e animais, ou mesmo quimicamente sintetizados, é a facilidade no melhoramento, tendo sido registrados aumentos de até 1000 vezes na produção de metabólitos de interesse biotecnológico. Anteriormente às técnicas de rDNA (DNA recombinante), a obtenção de linhagens produtoras de interesse industrial por técnicas clássicas, além de morosa, envolvia a utilização de agentes mutagênicos que causavam amplas modificações no genoma dos microrganismos, muitas delas impossíveis de se detectar, o que não acontece com a tecnologia de rDNA. Além disso, tal processo pode ser acelerado e, após os testes rotineiros de segurança, podem ser liberados mais rapidamente.

Dentre os compostos produzidos por microrganismos e utilizados na transformação ou produção de alimentos citam-se: (a) Aminoácidos: lisina, treonina, fenilalanina e triptofano; (b) Produtores de flavour ou realçadores de sabor: aminoácidos: ex: glutamato; proteínas/enzimas: ex: proteases, lípases e amilases; nucleotídeos: GMP e IMP; compostos aromáticos: baunilha; (c) Ácidos orgânicos: acético, propiônico, succínico, fumárico, láctico e cítrico; (d) Polióis: glicerol, manitol, eritritol e xilitol; (e) Polissacarídeos: xantana, gelana e dextranas; (f) Açúcares: frutose, ribose e sorbose; (g) Vitaminas: riboflavina (B2), cianocobalamina (B12) e biotina.

As enzimas são catalisadores biológicos, ou seja, aceleram significativamente a velocidade das reações biológicas devido a sua especificidade em relação aos substratos onde atuam. Possuem destacado papel na indústria de alimentos, pois podem influir na composição, no processamento e na deterioração dos alimentos. Em relação à deterioração, um dos exemplos mais comuns é o escurecimento que algumas frutas e hortaliças sofrem ao serem cortados e expostos ao oxigênio, como a maçã e a berinjela. Tal reação se deve à ação da polifenoloxidase, que libera um composto escuro.

No caso da utilização das enzimas como insumos adicionados para transformar a matéria-prima, as vantagens são muitas, entre elas, a maior eficiência no com menor formação de produtos intermediários ou finais tóxicos ou indesejáveis. Outro fator importante é a economia no processo pela substituição de ingredientes químicos e condições de alta temperatura ou pressão. Além disso, algumas enzimas, a exemplo da quimosina (utilizada no processo de fabricação de queijos), é tradicionalmente extraída do estômago de bezerros, ou seja, sua extração depende do abate de bezerros e é sazonal. A quimosina produzida por microrganismos GMs não tem esses inconvenientes sendo, inclusive, isenta dos problemas relacionados com a BSE e aprovada pelas associações internacionais de vegetarianos. A quimosina GM é utilizada, atualmente, em 80% dos queijos produzidos. Sua obtenção reduziu o abate de animais ainda jovens e trouxe uma economia à indústria de laticínios de, aproximadamente, US$ 50 milhões.

Assim, para atender à demanda da indústria, as enzimas, que são produzidas naturalmente por muitos microrganismos, porém em baixa quantidade, precisam ser otimizadas tanto pelo processo fermentativo como pela engenharia genética e de proteínas. Elas constituem o grupo mais importante de metabólitos microbianos e de diversificada utilização na indústria de alimentos, prevendo-se para 2006 um valor no mercado internacional da ordem de US$ 214 milhões.

O melhoramento industrial visa à obtenção de enzimas termoestáveis, uma vez que a maioria dos processos tecnológicos ocorre a temperaturas mais elevadas, e que tenham o certificado de GRAS. Apesar de centenas de enzimas já terem sido descritas e estudadas, passíveis de utilização na indústria de alimentos, menos de 50 foram aceitas para uso efetivo em alimentos e, aproximadamente, 30 são empregadas industrialmente, devido ao alto custo de desenvolvimento, patenteamento e aprovação.

Certos alimentos requerem complementação de aminoácidos, que deve estar preferencialmente na forma racêmica L, privilegiando, assim, a síntese microbiana anabólica, que produz essa forma de aminoácido. A síntese química de aminoácidos resulta em racêmicos que são pouco aproveitados. A lisina foi o aminoácido cujo mercado mais cresceu nos últimos anos, em torno de 20 vezes nas últimas duas décadas, impulsionado em grande parte pelos segmentos de criação de frangos e porcos, que utilizam a lisina nas rações. Também fazem parte de rações e de vários alimentos as vitaminas, os ácidos orgânicos e os corantes.

A biotecnologia tem papel fundamental na produção de alimentos. O investimento feito pelas indústrias de biotecnologia é grande, uma vez que são necessários muitos anos de desenvolvimento e testes de segurança para que o produto possa estar disponível comercialmente. No Brasil, a indústria da biotecnologia é expressiva, desenvolvendo produtos e, principalmente insumos biotecnológicos, e empregando mais de 28 mil pessoas em empresas pequenas e médias, muitas delas familiares.




Autor: Dra. Alda Lerayer

Referências bibliográficas: 


Apresentação: Dra. Alda Lerayer, engenheira agrônoma, doutora e pós-doutora em Genética de Bactérias Lácticas, Pesquisadora do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Laticínios, Instituto de Tecnologia de Alimentos – Campinas e Conselheira do CIB.


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