Quando as bactérias presentes no interior do iogurte demonstram que podem sobreviver aos sucos digestivos, a inteligência artificial é colocada em ação para investigar seus possíveis benefícios à saúde. Para os consumidores bombardeados com alegações sobre o suposto poder dos probióticos, o objetivo pode parecer familiar: um iogurte aprimorado.
Mas a empresa, proprietária das marcas Activia e da Actimel, está apostando que a tecnologia pode fornecer respostas sobre quais ‘bactérias do bem’ funcionam melhor e por quê, dando a seus produtos uma vantagem científica em um momento em que a receita está diminuindo e os consumidores estão cada vez mais cautelosos em relação aos ultraprocessados.
“A estratégia de negócios de longo prazo da Danone tem muito a ver com a transformação do setor de laticínios”, diz o CEO adjunto Juergen Esser. “Tudo o que diz respeito a trazer os fermentos certos, os benefícios certos para a saúde e fazer com que eles brilhem para o consumidor é fundamental”.
Sendo este o início de uma revolução impulsionada pela tecnologia ou apenas mais uma camada de marketing destinada a fazer com que os consumidores paguem mais, a Danone precisa dessa novidade.
A empresa francesa de 104 anos está em seu segundo ano de um esforço de recuperação orquestrado pelo chefe de Esser, Antoine de Saint-Affrique.
A unidade de laticínios sofreu uma queda nos volumes em sete dos últimos nove anos. Os volumes de vendas da divisão – a maior da empresa, que também conta com leites vegetais como o Alpro – caíram 4% no ano passado, quando os consumidores passaram a usar marcas mais baratas devido à crise do custo de vida. “A única forma para a Danone reviver seus negócios é investir em um produto superior que possa sustentar um melhor poder de precificação”, diz Bruno Monteyne, analista da Bernstein.
A Danone está apostando que sua experiência com laticínios e sua própria gama de bactérias lhe darão uma vantagem sobre rivais como a Nestlé. A empresa gastou cerca de US$ 100 milhões na nova fábrica inaugurada em fevereiro, reunindo o laboratório de pesquisa que abriga o estômago artificial, espaços de coworking e uma área de testes para consumidores em um subúrbio. Os laboratórios obtiveram acesso a amostras de pacientes e prontuários de saúde para que a IA ajudasse com colaborações, incluindo um projeto com a Universidade da Califórnia em San Diego e outro mais próximo de casa, chamado Le French Gut, que visa analisar o microbioma de 100 mil voluntários.
Na raiz da abordagem está a fermentação, um processo químico que existe há milênios. Mas nem todas as bactérias e leveduras são criadas da mesma forma, por isso o estômago artificial da Danone monitora a jornada dos probióticos depois que eles saem do pote de iogurte. Mantido em uma caixa de vidro do tamanho de um tronco, o estômago simula a absorção de alimentos durante o processo digestivo. Ele ajuda a Danone a determinar quais candidatos suportam os ácidos e as enzimas do estômago, avaliando sua capacidade de se estabelecer no intestino. “Se você está estudando um probiótico, ele precisa sobreviver”, explica Raish Oozeer, diretor de pesquisa de microbioma e probióticos da Danone.
As bactérias promissoras serão estudadas mais a fundo para ver como elas interagem com as fibras e as vitaminas dos alimentos. A Danone não permite que o estômago, desenvolvido com a empresa holandesa TNO, seja fotografado porque seu funcionamento é ultrassecreto. Em seguida, o machine learning assume o controle para encontrar conexões entre as bactérias escolhidas e as condições de saúde. A IA examina amostras de fezes, históricos médicos e descobertas científicas passadas, buscando ligações com qualquer coisa, desde perda de peso até imunidade.
Barrett elogia empresas como a Danone e a Nestlé por investirem em pesquisas para documentar os benefícios à saúde de seus produtos. Os esforços da companhia ocorrem em um momento em que o setor de alimentos enfrenta uma espécie de crise de identidade. Depois de erradicar a variedade e o frescor de seus produtos, que alimentavam um microbioma intestinal próspera, as empresas recorreram aos probióticos para agora sobrecarregar seus produtos com bactérias benéficas, depois que seus próprios cientistas reconhecerem como a comunidade de trilhões de organismos que vivem no intestino de cada pessoa é crucial para a imunidade, o envelhecimento e até mesmo a saúde mental.
Na Danone, o renascimento do iogurte é tradição. O fundador Isaac Carasso era um médico dos Bálcãs que começou a vender iogurte para farmácias na Espanha, preocupado com a desnutrição e as doenças intestinais das crianças locais. Ele batizou a empresa de Danone em homenagem a seu filho Daniel.
A empresa se tornou global depois que Daniel, que se mudou da França para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, comprou uma pequena loja de iogurte na cidade de Nova York e acrescentou uma camada de geleia aos iogurtes comuns. O produto mais doce foi um sucesso, e Carasso rebatizou a filial local de Dannon. A reformulação é emblemática da tensão entre tornar os alimentos saudáveis e atrativos. Durante anos, as empresas seduziram os consumidores com açúcar, contribuindo para uma epidemia global de obesidade. A tendência está mostrando sinais de reversão, mas alguns ainda veem os esforços mais recentes do setor como uma tentativa de resolver os problemas que ajudaram a criar – e o fazem oferecendo outra camada de alimentos ultraprocessados.
Tim Spector, um autor britânico e pesquisador de microbioma, aconselha o consumo de trinta plantas diferentes por semana, incluindo nozes e sementes. Os alimentos fabricados por empresas como a Danone e a Nestlé podem parecer saudáveis, segundo ele, mas “metade de seus produtos está nos envenenando e a outra metade está fingindo que nos torna saudáveis”. A maioria dos laticínios da Danone tem baixo teor de açúcar e sal – a empresa destaca sua alta pontuação em um índice global de nutrição. Mas, assim como outros grandes grupos alimentícios, a Danone usa aditivos como amido de milho e adoçantes como a sucralose, que tem sido associada a uma saúde intestinal ruim. O que a Danone traz de fato para a mesa é poder. Isabelle Esser, responsável por pesquisa e inovação na empresa, diz que é difícil fazer mudanças sem atender às massas. A empolgada engenheira belga entrou para o setor justamente porque criar impacto requer volume, diz ela, e ela sonha que a empresa possa um dia criar um produto para ajudar diabéticos.
O objetivo é que “você tome o produto todos os dias e não seja uma pílula, mas um alimento como remédio”, diz Esser, que não é parente do CEO adjunto da Danone. “E, com o tempo, aumentaremos sua imunidade ou sua resiliência”. A ciência também poderia ajudar a Danone a evitar alguns obstáculos do passado. A empresa foi obrigada a mudar a rotulagem e o marketing de seu iogurte Activia e da bebida láctea DanActive há cerca de 15 anos nos EUA para eliminar “alegações exageradas de saúde”.
Ela teve que pagar até US$ 35 milhões para reembolsar os clientes que argumentaram que a subsidiária da Danone nos EUA estava cobrando um preço mais alto devido a afirmações científicas que não podiam ser comprovadas, como o alívio da constipação. Um ano mais tarde, a empresa enfrentou restrições na União Europeia, onde os órgãos reguladores também restringiram as afirmações sobre saúde, limitando sua capacidade de anunciar benefícios específicos.
O novo impulso para “garantir que tenhamos substância”, como Saint-Affrique descreveu, deu início a uma corrida de licenciamento para garantir as alegações terapêuticas. A Nestlé, que tem suas próprias culturas de bactérias, patenteou uma cepa da mesma espécie da presente no Actimel da Danone, focando em uma forma termicamente tratada que oferece a vantagem de uma vida útil mais longa e documentando sua capacidade de aumentar a produção de interleucina-10, uma proteína essencial para a inflamação e a imunidade.
Os pesquisadores da Danone, por sua vez, mostraram que o consumo de seu iogurte reduziu o desenvolvimento de resistência à insulina e gordura no fígado em camundongos obesos. O estudo patrocinado pela empresa apontou um aumento de compostos benéficos nos fígados dos animais, o que a levou a obter patentes que lhe permitem falar dos benefícios para o fígado e para o metabolismo do açúcar de pelo menos três tipos desses ingredientes.
A empresa francesa afirma que há muito mais a ser feito nesse espaço em expansão na interseção entre alimentos e medicamentos.
“Se quisermos garantir que o consumidor considere nossos produtos superiores aos outros, precisamos ter certeza de que temos os argumentos certos sustentados pela ciência certa”, diz Esser, CEO adjunto que supervisiona as finanças e a tecnologia na Danone. “Você verá que isso fará a diferença”.
Fonte: Bloomberg Linea