01/03/2023 às 17h57min - Atualizada em 01/03/2023 às 17h57min

Como a agricultura familiar gaúcha está segurando uma geração no campo

Quatro histórias que mostram a agroindústria como motor de agregação de valor, inovação e o caminho para novos empreendimentos.

Há 12 anos, o produtor de queijo Marcelo Somacal, 45 anos, expõe seus produtos na feira da agricultura familiar, evento que acontece durante a Exposição Internacional de Esteio (RS), a mais antiga exposição agropecuária do país, que terminou neste domingo (4).

Somacal estava especialmente feliz nesta edição, porque além de um público que lotou o galpão da feira gaúcha e que lhe rendeu o equivalente a dois meses de vendas, ele exibia junto com os queijos o troféu de primeiro lugar na categoria “Queijos aromatizados de massa cozida jovem”, na “ExpoQueijo Brasil 2022 – Araxá International Cheese Awards”, uma das 32 categorias de avaliação dos lácteos, no início de junho, em Minas Gerais. “Já ganhei prêmio em Esteio, que é muito bom, mas fora do Rio Grande do Sul é a minha primeira vez, é sensacional”, diz Somacal.

Mas este não foi o único prêmio do ano. Em maio, com o mesmo queijo colonial ao vinho, e em categoria equivalente, Somacal já havia levado para casa a medalha de ouro do 1° Concurso de Queijos Artesanais do RS, realizado em Porto Alegre. De textura macia que derrete na boca, e de maturação média, o queijo colonial ao vinho é um produto tradicional da Serra Gaúcha. A queijaria fica em Farroupilha, município a cerca de 100 quilômetros ao norte da capital.

Somacal é de uma família de produtores rurais que planta tomate, cebola e frutas, como ameixa, pêssego e uvas. Há 15 anos, ele foi procurar um curso pensando em aproveitar as frutas, industrializando o excedente. Foi um balde de água fria, porque não era o que ele procurava. “Mas, um mês depois, me convidaram para um curso de queijo e disso eu gostei muito”, diz ele. “Entrei na atividade de cara, porque a gente já tinha um tambo pequeno que minha mãe tomava conta.”

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Com a construção de uma pequena agroindústria, a partir daí, toda a produção de leite do gado jersey da propriedade passou a ser convertida em queijos, cerca de 300 litros por dia. Mas a morte da mãe, em um trágico acidente, quase levou ao fechamento do negócio. “Não tinha como continuar com a produção, porque a minha mãe era a alma da criação e sem ela tudo se desarrumou”, afirma Somacal.

Foram os vizinhos que salvaram a queijaria, como um milagre da cooperação entre comunidades. Hoje, seis famílias da região, descendentes de italianos, como Somacal, entregam o leite para ser processado. Produzem, cada uma das famílias, entre 200 litros e 300 litros por dia, com uma delas entregando até 600 litros. E o negócio prosperou. Nos dias atuais, a agroindústria consegue processar, em média, cinco toneladas de queijos por mês.

Somacol contratou um veterinário para orientar os produtores, principalmente visando a melhoria genética do gado, a maior parte cruzados da raça holandesa, criados a pasto e alimentados no cocho.

“Acaba que hoje temos um leite de qualidade, processando 3.500 litros por dia. Tudo vai para o produto final. Não tiramos o creme de leite, o que deixa o queijo cremoso e amanteigado, mesmo o parmesão.”

O produtor vende, basicamente, na rota da Serra Gaúcha, mas já enviou seus queijos para a Bahia, Mato Grosso do Sul, Brasília e os vizinhos Santa Catarina e Paraná. “Ampliamos a queijaria e estamos agora regularizando para vender nosso queijo a outros mercados”, afirma. “No ano que vem vamos começar a vender queijos suíços.” A queijaria, que começou com o colonial, além do parmesão também faz um colonial mais maturado que lembra um emmental, dois tipos de frescal e o coalho.

Agricultura familiar organizada
Somacal é um dos produtores gaúchos que levaram suas produções para a Expointer há mais de uma década. Na edição deste ano foram montados 337 estandes, cada um ocupado por 2 ou 3 produtores rurais. O comércio de produtos da agroindústria, além de flores e artesanato de tribos indígenas, como a Non Ga Kaingange e a Mbyá-Guarani, movimentou R$ 8,1 milhões entre os dias 27 de agosto e domingo (4/9), quase o dobro de 2019, última feira presencial antes do início da pandemia de Covid-19.

“A feira tem uma grande diversidade, como é a produção do Rio Grande do Sul e, nesse caso, de predominância de mão de obra familiar”, diz Douglas Cenci, coordenador do Fetraf-RS (Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar), que reúne produtores de assentamentos, ou não assentados, em grande maioria. “Da feira participam, em geral, os que produzem e industrializam o tiram da terra, com suas agroindústrias de origem animal, trigo, pimenta, geleias, erva-mate, sucos, cachaça, vinhos, artesanato e vários outros produtos.”

A feira, que é organizada pelo Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária), mais o governo do estado, tem como parceiros a Fetraf, a Emater local (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), a Vila Campesina,  com produtores ligados ao MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), e a Fetag local (Federação dos Trabalhadores na Agricultura), responsável pelo maior grupo de produtores presentes desde os anos 1990, quando o galpão foi inaugurado.

“Temos na feira 95 estandes liderados por jovens até 32 anos e 66 liderados por mulheres. Também temos 17 produtores que estão na feira pela primeira vez”, diz Maribel Moreira, 35 anos, vice-presidente do sindicato rural de Pinheiro Machado, diretora executiva da Fetag-RS e coordenadora estadual de mulheres. “É um espaço de renovação, uma geração que está acreditando na inovação para uma agroindústria que vem produzindo alimentos diferentes de um ano para outro.”

Tempo de novos caminhos
Francielle Bellé, 28 anos, participa da feira com os pais, Nélio, 66 anos, e a mãe, Aldaci, 62 anos. Francielli vendeu na feira sucos, geléias, flores e plantas comestíveis desidratadas e as chamadas pancs (Plantas Alimentícias Não Convencionais), tudo produzido de forma orgânica no município de Antonio Prado, a cerca de 180 quilômetros de Porto Alegre. A área do sítio, que era de 3,7 hectares, hoje é de 11,5 hectares.

Francielle produz frutas, flores e pancs orgânicos e diz que não vai parar com suas pesquisas. A produção agroecológica começou em 1988 e inclui frutas nativas, como a polpa do butiá, que é processada desde 1991 – início da agroindústria familiar –, mais uvas, maçã, pêssego, cinco tipos de verduras, algumas leguminosas, batata, tomate, além das flores e pancs que também são vendidas frescas. Francielle, que é filha única, tem três filhos pequenos e olha para o futuro pensando em estratégias.

“Engravidei aos 17 anos e penso como será um dia a nossa sucessão. Tenho conversado com muitos agricultores mais velhos e mais jovens que eu, para ver o que, de fato, faz o jovem ficar na agricultura. Porque na época do meus pais era completamente diferente.”

Para ela, não são mais as comodidades da vida urbana, como internet, cinema e carro – que antes tiravam a maior parte dos jovens do campo –, que hoje seguram a nova geração. “Porque é possível uma vida confortável em uma propriedade rural”, diz. “Mas essa vida já não é mais suficiente aos jovens, que querem independência, autonomia, encontrar o seu lugar no mundo para permanecer na agricultura. Acho que isso é um grande desafio.”

A receita de Francielle, por ora, é não parar e criar inovações para o negócio da família. A novidade do último ano na produção da família Bellé foram as flores desidratadas, como o Amor Perfeito, a Capuchinha e a Três Marias. Neste ano, foi dela a ideia de desenvolver um tempero à base de pancs.

“Consigo colocar uma diversidade bastante grande de plantas, desde aromáticas, medicinais, folhas de frutas nativas e flores comestíveis, com um mix em torno de 50, podendo chegar a 100 plantas diferentes que vão agregar, além de sabor, também muita nutrição aos pratos”, diz ela. “As pessoas estão se tornando mais exigentes com aquilo que comem. Então, é preciso trabalhar muito a qualidade dos produtos e estar sempre inovando.” A família trabalha com flores comestíveis desde 2016, depois vieram as pancs e os desidratados.

Francielle agora tenta fazer o peixinho-da-horta desidratado, em chips, uma planta também chamada de lambari-da-horta, que leva esse nome justamente pelo sabor. A ideia é usar essa mesma técnica para fazer chips de folhas, como por exemplo de chuchu e abóbora. Ela vai por tentativa e erro, mas confessa que está sempre em contato, em busca de auxílio técnico, como faz na UFRGS (Universidade Federal do RS) e na Unisinos.

“A gente também já planeja lançar alguns blends de chás, com frutas, folhas e flores comestíveis”, diz ela. “Temos de procurar, vamos errar, mas acertar faz parte.” A maior parte dos produtos da família Bellé são vendidos na feira dos agricultores ecologistas em Porto Alegre, a primeira feira de produtos agroecológicos do Brasil, que acontece uma vez por semana desde 1989.

O caçador de milho crioulo - Procurar pelo diferente também levou o agricultor Sadi Giacomin, 58 anos, a um feito espetacular. Ele produz no município de Dois Lajeados 16 variedades de milho crioulo, sendo parte dele descendente de tribos indígenas. Mesmo sendo filho de agricultor, Giacomin fez do campo um negócio há somente 10 anos. A família foi dona, por 15 anos, de um frigorífico que processava embutidos. Hoje, sua meta é certificar seu milho como orgânico. Por ora, vende sua safra como produto natural, com o processo de certificação em andamento junto à Ecovida, que é uma certificadora coletiva.

São 9,4 hectares cultivados no município de Lajeado (RS), dos quais 5 hectares de milho e o restante para outras culturas, sendo a maior parte frutas. O produtor tira, em média, 15 toneladas de milho, com pico de 18 toneladas em ano de safra boa. “Antigamente eu já ajudava meu pai a produzir as sementes”, diz ele. “Agora, produzo as minhas.”

Giacomin também faz parte do grupo Guardiões da Sementes, da diocese de Santa Cruz do Sul, onde troca variedades com outros agricultores. “Tenho até um milho do grão empalhado, que é raro e que eu produzo para manter a variedade que vem lá dos ancestrais indígenas”, afirma. A maior parte da lavoura é das variedades Mato Grosso, amarelo do Pará e o bico de ouro. Em menores áreas estão, por exemplo, o milho ferro, também chamado de pururuca, e o milho argentino, que tem um grão mais duro e rico em caroteno, além de boa produtividade em farinha ou moído para canjica.

A maior parte das vendas saem desses dois produtos, sendo a farinha um blend de pelo menos três tipos de milho. “Vendo nas feiras de orgânicos há cinco anos ou em casas específicas de produtos diferenciados e em restaurantes que me pedem diretamente”, afirma Giacomin. “Porque quero que o chefe da propriedade seja a farinha de milho crioulo.”

Por enquanto é a venda de frutas, principalmente o morango, que segura a maior parte das contas. “A gente espera que, no futuro, o nosso trabalho continue”, afirma. “E que as pessoas, todas elas, enxerguem o valor do orgânico e possam comprar, o que eu considero o principal desafio com a concorrência.”

Filhos que retornam à casa - A história do retorno de Sadi Giacomin não é a única. A agricultura familiar é um meio, também, de resgates. Como ocorreu com o produtor Jair Davi Bergamaschi, 50 anos, de Nossa Senhora do Caravaggio, um bairro rural de Fagundes Varela, na região da Serra Gaúcha. Ele chegou a trabalhar, assim como Giacomin, em uma fábrica de embutidos, mas largou o emprego , voltou para casa e montou uma agroindústria de embutidos junto com o irmão, repetindo receitas que o pai já fazia no porão. Hoje, parte dos suínos abatidos é de criação própria e outra parte é comprada também de pequenos produtores da região. “Vimos que era uma atividade de rentabilidade boa e fomos atrás da Emater para nos ajudar a montar a fábrica de embutidos”, afirma.

Bergamaschi sonha um dia ter Selo Arte para o salame que produz, como ocorre com o queijo

A produção inicial, que era de 30 quilos por semana há cerca de duas décadas, hoje é de 2.000 quilos semanais. “Não queremos fazer mais que isso, porque essa é a nossa capacidade para um bom produto”, diz Bergamaschi, que produz dois tipos de salame, copa, linguiça toscana, costela e matambre suíno.

“Começamos bem simples, de forma muito artesanal, e aí fomos nos adequando e inovando para não ficar pelo caminho.”

Além disso, claro, os irmãos foram se adequando à legislação e fiscalização, um caminho sem o qual “não é possível produzir.”  Um dos sonhos de Bergamaschi é que um dia seus embutidos tenham um selo de produto artesanal, como ocorre com o Selo Arte concedido ao Queijo Artesanal em junho do ano passado pelo Governo Federal. “Seria como vender um produto com propriedade, como se vende um celular em qualquer parte do país. No Rio Grande do Sul muita gente conhece nosso salame, mas não fora daqui.”

Para o produtor, o caminho não seria difícil, já que os defumados têm vida de prateleira de 90 dias. Bergamaschi acredita no apelo para ganhar um consumidor que experimenta um “produto bem feitinho e bem defumado” que vem da agricultura familiar. “Nas feiras, esses clientes andam até encontrar nossos embutidos. Chegam com aquele sorriso que a gente já conhece há muitos anos. Feira é um lugar de muita gratidão”, diz Bergamaschi. O produtor participa, regularmente, de pelo menos outras oito feiras no ano, além da exposição de Esteio.

Fonte: Forbes Agro. Com
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