Sediar o campeonato mundial de 2014 significa, para o Brasil, demonstrar a superação da condição histórica do processo de expropriação, da condição de ex-colônia e de país "subdesenvolvido", e revelar-se um país moderno
A modernização tecnológica e o desenvolvimento econômico são os princípios norteadores do ideal da sociedade moderna. Entretanto, os séculos de exploração representaram e representam um obstáculo aos países colonizados no que se refere à possibilidade de propagação desse ideal. O Brasil, neste contexto histórico, como país sede da Copa do Mundo de 2014, encontra-se em um duplo desafio: primeiro criar condições estruturais para sediar o evento; segundo, apresentar uma excelente seleção para fazer jus à condição de país do futebol e receber o título de campeão mundial em casa.
Histórica e mundialmente, o Brasil é conhecido como o país do futebol; não somente por ser o único país com cinco títulos de campeão do mundo (1958, 1962, 1970, 1994 e 2002), mas também por formar seleções que, em campo, sempre encantam com suas jogadas criativas, irreverentes e de muita técnica. A cada ano de Copa gera-se uma expectativa sobre qual será a melhor seleção; mas não há dúvida de que a principal rival é a seleção brasileira. No caso da Copa do Mundo de 2014, no entanto, o desafio vai além do campo - da busca de ser o melhor país nesta modalidade esportiva -, é preciso também cumprir a tarefa de oferecer infraestrutura adequada para sediar um evento dessa magnitude.
Na primeira copa do mundo sediada no Brasil, em 1950, o país ainda estava em construção, ou seja, as exigências em infraestrutura eram menores
Na primeira Copa do Mundo sediada pelo Brasil, em 1950, o país ainda estava em construção, ou seja, as exigências em infraestrutura eram menores, e os ideais da modernização ainda se delineavam até mesmo no âmbito mundial. Entretanto, hodiernamente, sediar a Copa do Mundo de 2014 para o Brasil significa demonstrar a superação da condição histórica do processo de expropriação, da condição de ex-colônia e de país "subdesenvolvido", e revelar-se um país moderno. O grande desafio será modernizar o país seguindo os padrões exigidos pelo modelo hegemônico para sediar o maior evento esportivo mundial. O processo modernizador exige remodelação dos estádios, modernização de instalações, equipamentos e serviços; principalmente no que se refere à segurança e ao sistema de transporte terrestre e aéreo. Em última instância, esse cenário poderá simbolizar uma mudança em diversas dimensões sociais, políticas e econômicas do país, bem como no próprio imaginário de construção da identidade nacional.
O Brasil traz no âmago de sua história a necessidade da superação dos longos anos de exploração e estagnação política e socioeconômica, pois até o final do século XIX havia total dependência da coroa portuguesa, foi somente no início do século XX que surgiram os primeiros projetos de modernização do país. No entanto, a adoção da perspectiva hegemônica ditada por Europa e Estados Unidos como ponto de partida sempre representa um impasse para a consolidação dos países colonizados.
Desafio da Modernização
A ideia da modernização e seus desdobramentos tornaram-se pensamento fulcral para os países descolonizados, como um caminho de resgate de um passado de exploração, principalmente com o objetivo de superar o atraso do período colonial. O cabedal teórico do Ocidente, desde o período Iluminista, construiu um imaginário de progresso como base da concepção da sociedade moderna que desde meados do século XX vem-se apropriando da concepção de "desenvolvimento" como pressuposto do processo de modernização. Partindo desse princípio, faremos aqui uma breve análise crítica sobre a construção teórica dos pressupostos da ideia de modernização, refletindo sobre o impasse que o Brasil enfrenta para constituir-se enquanto sociedade moderna, adequando-se ao modelo idealizado.
Americanização - Termo empregado para descrever a influência que os Estados Unidos exercem sobre a cultura de outros países, resultando no fenômeno da substituição de uma determinada cultura pela cultura estadunidense. Quando tal se dá contra a vontade da cultura afetada ou pelo uso da força, o termo tem uma conotação negativa; quando é buscada voluntariamente, possui uma conotação positiva.
O conceito de modernização aparece somente no pós-guerra, inserido em um contexto de profundas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais mundiais. A partir da década de 1950, a palavra passa a ser utilizada como termo técnico de análises socioeconômicas e tecnológicas. A ideia de modernização, segundo Sztompka (1998), é empregada frequentemente em três sentidos: a) um que denota a mudança social progressiva; b) outro que está atrelado à ideia de modernidade; e um terceiro c) que se refere ao esforço dos países "subdesenvolvidos" para alcançar os países "avançados". Todas estas acepções, mesmo que empregadas sob enfoques diferenciados, remetem à idéia de um modelo ideal de sociedade moderna como sinônimo de ocidentalização ou americanização. Ou ainda, em semelhante contexto histórico-social, "modernização significa europeização", como expressa Florestan Fernandes (2008). Para Habermas (2002) modernização significa "um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo" no sentido de formação de capital e mobilização de recursos, de desenvolvimento e aumento da produtividade do trabalho, de formação de identidades nacionais, bem como da "expansão dos direitos de participação política".
O grande desafio será modernizar o país para sediar o maior evento esportivo mundial seguindo os padrões exigidos pelo modelo hegemônico.
No mesmo sentido, Berman (2006) trata o termo como uma multidão de processos sociais que geram o "turbilhão da modernidade". O turbilhão da modernização, na análise de Berman, é alimentado por processos sociais como as descobertas científicas, a industrialização da produção, a descomunal explosão demográfica, as formas de expansão urbana, os Estados nacionais poderosos, os movimentos de massa. Como impulso para esse conjunto de processos, aparece o mercado mundial capitalista, "drasticamente flutuante, em permanente expansão". Resumindo, o imaginário ideológico de "desenvolvimento" aparece como um movimento planetário de racionalização, urbanização, democratização, tecnologia e expansão do capitalismo.
Ideia de Modernização
A perspectiva desses autores nos remete ao segundo sentido empregado para a ideia de modernização. Pois, tendo em vista a complexa e extensa história da modernidade, alguns autores propõem dividi-la em três fases. (BERNAN, 2006; CANCLINI, 1998; GIDDENS, 1991). A primeira fase começa com o descobrimento do novo mundo e vai até a revolução de 1789 e suas reverberações; a segunda vai da onda revolucionária de 1790 até primórdios do século XX; quando se inicia a terceira fase, que se segue até os dias de hoje - fase na qual emerge a ideia de modernização.
Dessa forma, autores que percebem a Teoria da Modernização atrelada à Modernidade argumentam que ela se constitui em um arcabouço de pressupostos da Teoria da Modernidade dentro de uma lógica temporal linear da história europeia ocidental, como um continuum de um evolucionismo unilinear. Neste sentido, os estudos pós-coloniais e culturalistas descrevem que a Teoria da Modernidade e a Teoria da Modernização apresentam como principal característica tratarem-se de um saber eurocêntrico, construído a partir da Europa e dos Estados Unidos. Uma lógica que nos impede de ver que não há lugares passivos e ativos na história mundial e que contemporaneamente vivenciamos uma era planetária de múltiplas modernizações. Ou seja, segundo essas análises críticas contemporâneas, a Teoria da Modernização nada mais é que um segmento da Teoria da Modernidade, e ambas estão fundamentadas basicamente em análises relacionais hierarquizadoras ("eu" - Europa; "outro" - países periféricos), tendo como parâmetro de análise comparativa conceitos de discriminação e exclusão do "outro".
Na primeira Copa do Mundo sediada no Brasil, em 1950, o país ainda estava em construção. Hoje, para sediar a Copa do Mundo de 2014, mais do que modernizar o país, será necessário investir na formação da identidade nacional
O Brasil traz no âmago de sua história a necessidade da superação dos longos anos de exploração e estagnação política e socioeconômica , pois até o final do século XIX havia total dependência da coroa portuguesa
Por fim, dentre as principais formas analíticas das Teorias da Modernização, segundo Feres Jr. (2005), há uma tendência de classificar os países "periféricos" como "atrasados", "subdesenvolvidos" e "dependentes" sob quatro enfoques de argumentação; a) "os países subdesenvolvidos não passaram por qualquer mudança histórica significativa", b) "a sociedade Latin American é dividida em dois setores, um moderno, urbano e capitalista, e outro rural, atrasado e/ou feudal", c) que "a difusão de capital, cultura e tecnologia, oriunda dos países desenvolvidos, é um fator crucial na industrialização dos países satélites", e d) "frequentemente, classificam as áreas subdesenvolvidas da Latin American como pré-capitalistas".
Cabe destacar que todas essas abordagens de análise da Modernização estão impregnadas da ideia de "desenvolvimento" como pressuposto teleológico para a humanidade - um modelo de sociedade baseado principalmente em alguns países da Europa, bem como nos Estados Unidos. A categoria "desenvolvimento", conforme observa Wallerstein (2006, p. 10), "só se torna corriqueira depois de 1945 e, na época, de início, naquilo que parecia o domínio marginal da explicação de desenvolvimento então corrente no 'Terceiro Mundo'". Entretanto, os ideais da Teoria da Modernização formaram um conjunto complexo de modelos de desejo das sociedades descolonizadas politicamente, tornando-se "avatares do conceito de 'revolução industrial'. Idéia que tem sido, por sua vez, o eixo não só de quase toda a historiografia, mas também de todas as variedades de análise nomotética".
Nomotética - Literalmente significa "proposição da lei" (derivação grega) e é usada em Filosofia (veja também nomotético e idiográfico), Psicologia e Direito com significados diferentes. Em Sociologia, explicação nomotética apresenta uma compreensão generalizada de um dado caso e é contrastada com a explicação idiográfica, que apresenta uma descrição completa de determinado caso.
Essa construção teórica de um modelo eurocentrado de modernização determina que os demais países periféricos vivam em constante conflito, já que tais modelos teóricos e conceituais deslocalizados no tempo e no espaço obscurecem o objeto investigativo. Nesse contexto, o Brasil, além de promover a modernização de infraestrutura do país para sediar a Copa Mundo de 2014, precisa desconstruir o discurso secular de país "atrasado" e "subdesenvolvido" e desfazer a imagem do brasileiro de povo "selvagem" que vive de carnaval e futebol.
Projetos de Modernização
O Brasil, até final do século XIX, esteve sob o domínio imperial de Portugal, que pouco ou quase nada investiu na colônia. Somente após a independência política e mais intensamente na segunda metade do século XX ocorreram os diversos fenômenos sociais, políticos e econômicos que podem ser considerados fundamentais para o processo de modernização do país, no sentido da teoria vigente. Conforme descrito anteriormente, esses fatores são comumente apontados como indicadores da modernização e aparecem no crescimento da indústria, do emprego e de um desenvolvimento econômico impulsionado pelo consumo de bens duráveis produzidos na América Latina; na expansão da educação e no aumento do mercado artístico e cultural; na expansão e consolidação da urbanização; no avanço dos movimentos sociais; e na introdução de novas tecnologias de comunicação (CANCLINI, 1998).
Para alguns especialistas, a modernização é alimentada por processos sociais como as descobertas científicas, a industrialização da produção, a descomunal explosão demográfica e as formas de expansão urbana.
Apesar de vários debates e controvérsias sobre o início do processo de modernização do Brasil, estudos comumente apontam a década de 1930 como o período da emergência do processo modernizador brasileiro, após a conhecida Revolução de 30. A partir de uma visão puramente econômica e tecnológica de desenvolvimento, pode-se considerar que, no período entre guerras, devido à recessão na Europa, os países da América Latina e, no caso, o Brasil, tiveram de buscar alternativas para suprir as necessidades internas de produção, dando início ao processo de industrialização que acenou um novo rumo para a sociedade brasileira.
Os projetos de desenvolvimento iniciados na década de 1930 no Brasil estiveram associados aos projetos nacionalistas do governo Vargas, desdobrados nos projetos nacional-internacionalistas do governo de Juscelino Kubitschek. O ápice dos projetos desenvolvimentistas e de modernização, entretanto, se estabelece durante o regime do governo militar. Nesse contexto, a criação da CEPAL (2011) (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe - fundada em 1948) fez parte dos projetos de desenvolvimento econômico dos países latino-americanos. Posteriormente, a organização incluiu os países do Caribe e se engajou no projeto de desenvolvimento social. A CEPAL foi fundada com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social, promovendo a cooperação entre os países da América Latina, levando em consideração as características econômicas e culturais particulares, bem como os problemas específicos de cada nação. Outra atitude que sinaliza a preocupação desenvolvimentista é o lançamento, em 2007, do PAC (Programa de Aceleração ao Crescimento), reforçando os objetivos de alavancar o crescimento econômico do Brasil e tendo como principal foco investimentos em infraestrutura, inclusive na área social (habitação, transporte, saneamento básico, água e energia). O Brasil teve de buscar alternativas para suprir as necessidades internas de produção, dando início ao processo de industrialização. Um dos indicadores da modernização é o crescimento da indústria, do emprego e de um desenvolvimento econômico impulsionado pelo consumo de bens duráveis, além da expansão da educação e da cultura.
Como se pode perceber, os ideais e projetos modernizadores não são algo novo e muitas foram as iniciativas políticas nesse sentido. Porém, em se tratando de um país com grandes dimensões territoriais e populacionais, o processo de modernização deve ser pensado não somente a partir de modelos impostos, mas elaborados para outros contextos. É necessário levar em consideração outras perspectivas, uma vez que considerar um único modelo de modernização inibe as reflexões e atos no que concerne às múltiplas modernizações planetárias.
Que país é este? Que país será o Brasil em 2014? Se projetarmos um Brasil para a Copa do Mundo somente a partir do ideário hegemônico de modernização, priorizando os aspectos de infraestrutura para sediar o evento, podemos cair na falácia da idéia do "desenvolvimento" eurocentrado e ideológico. O que pode acarretar em somente criarmos "máscaras" de país moderno e na tão esperada transformação social nunca chegar. O essencial à nossa modernização implica em projetos que permitam construir um país moderno elaborado para e pela sociedade brasileira. A relação entre os projetos de modernização global e os projetos de modernização local deve considerar não somente os eventos mas a sociedade brasileira e seus cidadãos. O processo é complexo e exige planos amplos e inovadores. Os projetos materiais são fundamentais. Entretanto, os projetos sociais também são emergenciais. Pouco nos adianta ter os maiores estádios de futebol do mundo, como foi o caso da construção do Estádio do Maracanã no Rio de Janeiro para a Copa de 1950, e nada se fazer, por exemplo, para promover a inclusão social dos moradores das favelas, ou mesmo ações para melhorar os índices de analfabetismo do país. Portanto, somente fará sentido falar em um Brasil moderno se juntamente com o remodelar da infraestrutura para sediar o evento esportivo estejam na pauta projetos de inclusão socioeconômica, bem como uma nova construção da identidade brasileira - com projetos que promovam a modernização social, em direção a uma sociedade igualitária em acessos e direitos para todos os cidadãos que compõem esta nação. Entre os desafios que o Brasil vai enfrentar como país sede da Copa de 2014 está o de apresentar uma excelente seleção para fazer jus à condição de país do futebol e receber o título de campeão mundial em casa
Redimensionando os desafios
Titulei este artigo como duplo desafio. Entretanto, se se ampliam as perspectivas de análise, poder-se-ia falar em desafios múltiplos. É inegável que a Copa do Mundo em 2014, assim como os Jogos Olímpicos em 2016, poderão dar grande visibilidade ao Brasil mundialmente, afinal, conforme a declaração do então presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) Ricardo Teixeira, "a Copa do Mundo vai muito além de um mero evento esportivo. Vai ser uma ferramenta interessante para promover uma transformação social".
O problema histórico da modernização de ex-colônias é que, na ânsia de superar seus problemas, privilegiam-se projetos e planos "que prometem soluções aparentemente imediatas, copiadas na sua maioria dos países desenvolvidos, deixando as análises em profundidade para o amanhã que nunca vem". Fascinados pelos modelos dos países desenvolvidos, iludem-se pensando que a "adoção pura e simples dará um fim às suas mazelas" (MOTOYAMA, 1994, p. 14-15).
Portanto, no processo de elaboração de projetos e planos para o Brasil não podemos esquecer que os problemas sociais, econômicos e políticos brasileiros vão muito além de questões como infraestrutura. As mazelas e desigualdades sociais transcendem a materialidade. Vivemos ainda em um país que mesmo sendo classificado como a sexta maior economia mundial, apresenta muitas contradições, principalmente socioeconômicas e educacionais, gerando um abismo que consequentemente revela-se na falta de segurança, na falta de acesso à saúde e educação, bem como num racismo velado.
Autor: Adriane Nopes
Referências bibliográficas:
FERES JR., João. A história do conceito de Latin American nos Estados Unidos. Bauru: EDUSC, 2005.
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global Editora, 2008.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista, 1991.
GERMANI, Gino. Sociologia da modernização. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1974.
GOODY, Jack. O roubo da história. São Paulo: Contexto, 2008.
HABERMAS , Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MOTOYAMA, Shozo (Org.). Tecnologia e industrialização no Brasil: uma perspectiva histórica. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, Centro Estadual de Educação e Tecnologia Paula Souza, 1994.
SZTOMPKA, Piotr. A Sociologia da mudança social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
WALLERSTEIM, Immanuel. O fim do mundo como o concebemos: Ciência Social para o século XXI. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
*Adriane Nopes, doutoranda e mestre em Sociologia Política pela UFSC/Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista Capes, especialista em História Social pela UDESC/Universidade do Estado de Santa Catarina, e professora licenciada pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina, nos cursos de Direito e Comunicação. E-mail: [email protected]