17/08/2014 às 13h47min - Atualizada em 17/08/2014 às 13h47min

Creme de leite: aspectos de mercado, tecnológicos e legais

O creme de leite é obtido por separação centrífuga entre a parte lipídica, menos densa, e o leite desnatado. Dentro da categoria de cremes de leite, no Brasil, os produtos mais consumidos são os cremes de leite submetidos a tratamento a ultra-alta temperatura (UAT ou UHT), disponíveis com teores de gordura médios de 20%. Há também os pasteurizadores que contêm, em média, 35% de gordura. Os teores maiores de gordura são encontrados no produto conhecido como nata, mais popularmente consumido nos estados do Sul do país. Este artigo pretende revisar os principais aspectos tecnológicos da fabricação de creme de leite, características do mercado varejista para esta categoria e os padrões legais vigentes no Brasil.

Introdução

O consumo do creme de leite está, originalmente, associado a sobremesas e frutas frescas, sendo também usados em alimentos como bolos, pudins, sorvetes e sopas. Além disto, é a matéria prima principal para a fabricação de manteiga e óleo de manteiga (manteiga de garrafa, butteroil). Segundo Maubois, Carvalho (2010), desde os anos de 1950 há artigos científicos com dados sobre a produção de creme de leite de consumo.

O creme de leite é uma emulsão de gordura em leite com composição similar à do leite integral exceto pela alta quantidade de gordura (GONÇALVES, 2012 citado por SOARES ETAL AL, 2013), que é determinante na caracterização dos diferentes tipos de creme de leite produzidos. O creme é preparado, comercialmente, por separação centrífuga entre a parte lipídica, menos densa, e o leite desnatado. Segundo Smiddy ET al (2009), há grande variação nas regulamentações para teor de gordura de creme de leite de vários países. Há, ainda, diferentes nomes para produtos semelhantes e, mesmo, a inexistência de determinados produtos derivados de creme de leite em alguns países.

Até os anos 90, no Brasil, o pagamento do leite era baseado no seu teor de gordura. Apesar da importância da transformação do leite em queijo, outros componentes não eram valorizados economicamente. Esta prática era válida quando o leite era usado apenas ou, principalmente, para a produção de manteiga. Possivelmente o pagamento do leite com base em seu teor de gordura, além de seu valor para produção de manteiga, se deve à relativa simplicidade dos métodos analíticos que foram desenvolvidos, principalmente, para gordura mais do que para proteína e lactose. No Brasil, a indústria de laticínios já começou a trabalhar com pagamento de leite bonificando extrato seco total/ proteínas (MAUBOIS, CARVALHO, 2010; FOX, McSWEENEY, 1998). 

Mercado de creme de leite no Brasil 

Existem vários tipos de creme de leite e sua classificação pode ser baseada no teor de gordura, no tipo de tratamento térmico que lhe é conferido, se é fermentado ou não. De modo geral, no Brasil, encontra-se no mercado varejista, predominantemente, o creme de leite UHT/UAT, seguido do creme de leite pasteurizado, ambos na sua versão não fermentada. Além do creme de leite UAT em embalagem cartonada e o creme de leite pasteurizado, há o creme de leite em lata, esterilizado e a nata. Em algumas regiões do país se encontra o creme de leite pasteurizado, com maior teor de gordura (chegando a 50%), com a denominação de nata, sendo esta versão mais consumida nos estados do Sul do Brasil (Zacarchenco, Van Dender, 2012). Dentre os produtos derivados de creme de leite, além das manteigas, manteigas de garrafa e gordura láctea, encontra-se creme para bater chantilly e chantilly em aerossol.

Algumas preparações culinárias exigem o uso de creme azedo (sour crean). Este produto, cuja fabricação é ainda incipiente no Brasil, é bastante comum em vários países do mundo. Regionalmente os autores Soares et al (2013) citam ainda o “creme do sertão”, que é um tipo de creme de leite produzido artesanalmente, sem emprego de processamento térmico, principalmente no Nordeste, sem uma fiscalização efetiva.

Legislação e classificação de cremes de leite 

Segundo Simiddy et al (2009), os cremes podem ser classificados quanto ao seu teor de gordura (g/100\g): creme para café light (<10), creme para café (15 – 18) creme simples ou médio (15 – 25), creme ou creme integral (30 – 40) e creme duplo (45 – 50).

Na portaria MAPA 146/1996, que aprovou os “Regulamentos Técnicos de Identidade e Qualidade” de vários produtos lácteos, destacam-se as classificações e demais padrões constantes doa Anexos IV e V que regulamentam, respectivamente, creme de leite e creme de leite a granel de uso industrial. O creme de leite é classificado. No Anexo IV, de acordo com seu teor de gordura:

 

- creme de baixo teor de gordura ou creme leve ou semicreme (10 a 19,9g gordura/100g de creme).

 

- creme (20 a 49,9g de gordura/100g de creme e

 

- creme de alto teor de gordura (acima de 50g de gordura/100g de creme).

 

Ainda segundo este regulamento (Rort 146/96), o creme cujo teor de matéria gorda seja superior a 40% (m/m) poderá designar-se “duplo creme”; o creme cujo conteúdo de matéria gorda seja superior a 35% (m/m) poderá, opcionalmente, designar-se “creme para bater”; o creme submetido ao processo de homogeneização deverá designa-se, além disso, como “homogeneizado”. O creme de leite a granel para uso industrial não apresenta classificação (BRASIL, 1996).

 

No anexo IV da Portaria 146/1996, estão os parâmetros que os cremes de leite pasteurizado, esterilizado ou UHT/AUT, homogeneizado ou não, devem atender. De acordo com esta norma, o creme deve ser obtido a partir do leite de vaca e pode conter, como ingredientes opcionais, sólidos lácteos não gordurosos em teores máximos de 2% (m/m), caseinatos em quantidades máximas de 0,1% (m/m) ou, no máximo, 1,0% (m/m) de soro em pó. Quanto aos requisitos químicos e físicos, o creme de leite deve apresentar teor máximo de acidez de 0,2% (m/m) ou 0,2g de ácido lático/100g de creme, além de atender aos teores lipídicos já citados (BRASIL, 1996).

 

Não é permitida, ainda segundo a Portaria 146/1996, a adição de nenhum aditivo ou coadjuvante para o creme pasteurizado. Já o creme esterilizado e o creme UHT poderão conter os agentes espessantes  e/ ou estabilizantes (ácido algínico e seus sais de cálcio, sódio, potássio e amônio, carboximetilcelulose e seu sal de sódio, goma arábica, goma jataí ou algaroba, goma guar, goma xantana, carragenina e seus sais de sódio ou potássio, pectina e celulose microcristalina) em quantidade total não superior a 0,5% (m/m) no produto final. Poderão conter, também, sais estabilizantes (citrato de sódio; fósforo mono, di ou tri de sódio, potássio ou cálcio; cloreto de cálcio e bicarbonato de sódio) em quantidade total não superior a 0,2% (m/m) no produto final.

 

Para o creme de leite a granel, destinado ao uso industrial, a norma traz maior detalhamento sobre o que não deve conter, citando a ausência de matérias estranhas, colostro, sangue ou pus, antissépticos, antibióticos, conservadores, neutralizantes, resíduos de hormônios, toxinas microbianas, resíduos de hormônios, toxinas microbianas, resíduos de pesticidas e metais tóxicos em quantidades superiores às estabelecidas na legislação específica. Para o creme de leite a granel de uso industrial, a Portaria 146/1996 faz referência, ainda, a níveis de radioatividades que não devem ser superiores a 5 Bq/L para Ce134, 1131 e Sr90. A mesma portaria cita para creme de leite apenas que deve haver “ausência de qualquer tipo de impurezas ou elementos estranhos” (BRASIL, 1996).

 

Quando aos parâmetros físico-químicos, a legislação brasileira vigente estabelece, para creme de leite a granel de uso industrial, teor mínimo de matéria gorda de 10g/100g de creme e teor máximo de acidez de 0,20g de ácido lático/100g. Para esta categoria de produto, a Portaria 146/1996 não admite nenhum tipo de aditivo ou coadjuvante. Este tipo de creme de leite deve ser resfriado e mantido a temperatura não superior a 8°C, em estabelecimento industrializadores de produtos lácteos. Poderá, opcionalmente, ser submetido à termização (processo térmico eu não inativa a fosfatase alcalina) ou pasteurização. A temperatura de chegada do creme não deve ser superior a 12°C. Será admitida uma temperatura de chegada não superior a 15°C quando o conteúdo da matéria gorda do creme superar 42% (m/m). Os requisitos sensoriais da norma são bastante genéricos tanto para creme de leite como para creme de leite a granel de uso industrial.

 

O artigo de Zacarchenco, Van Dender (2012) traz informações sobre a Instrução Normativa nº 23, de 30 de agosto de 2012, que foi elaborada para normatizar o produto Nata. Neste documento a nata é definida como o produto lácteo relativamente rico em gordura retirada do leite, que apresenta a forma de uma emulsão de gordura em água, homogeneizado ou não, e submetido a processo de pasteurização, mediante tratamento térmico e procedimentos tecnologicamente adequados, suficientes para destruir todos os microrganismos patogênicos (BRASIL, 2012). A partir do momento que a nata foi regulamentada, sua tecnologia de fabricação deve atender também às boas práticas de fabricação e às demais determinações estabelecidas na Portaria nº 368/1997 (BRASIL, 1997). Entre as exigências da IN nº 23/2012 pode-se destacar que o teor de gordura láctea deve ser de, no mínimo, 45% e a acidez de, no máximo, 0,2% (g ácido lático/100g).

 

A Portaria 146/1996 normaliza ainda a gordura láctea em seu anexo V. esta norma estabelece vários parâmetros físicos e químicos que a matéria gorda dos produtos lácteos e/ou a matéria gorda da base láctea dos produtos com adições deverá apresentar. Entre estes parâmetros estão o ponto de fusão da gordura, que deve se situar entre 28 a 37°C, o índice de refração a 40°C que deverá ser de 1.4520 a 1.4566, o índice de iodo (Wijs) de 28 a 38, o índice de Reichert Meissel de  24 a 36, o índice de Polenske de 1,3 a 3,7 e o índice de Saponificação, de 218 a 235. Neste anexo V fica definida, ainda, a necessidade da determinação de gorduras vegetais na gordura de leite por cromatografia em camada delgada dos esteróis, que deve apresentar-se negativa. Este Anexo já prevê a variabilidade de tipo e razões entre ácidos graxos da gordura láctea e afirma que quando ficar demonstrado, com segurança, que estes valores não correspondem parcial ou totalmente aos obtidos da gordura láctea de uma determinada região leiteira, estes últimos poderão ser levados em conta como valores normais para a dita região. Isto foi estabelecido devido ao fato da alimentação do animal, entre outros fatores, poder gerar esta variação.

 

Padrões microbiológicos

 

Os padrões microbiológicos do creme de leite são normalizados pela já citada Portaria 146/1996, do Ministério da Agricultura. Contudo, creme de leite pasteurizado e UHT têm padrões microbiológicos também definidos pela legislação do Ministério da Saúde, através da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em sua Resolução RDC 12/2001. A seguir são destacados os parâmetro legais estabelecidos no Brasil para as características microbiológicas de creme de leite pasteurizado e UHT.

 

Quando os critérios microbiológicos da Portaria 146/1996, o creme de leite pasteurizado deve apresentar contagens de microrganismos aeróbios mesófilos de 104 a 105 UFC/g, coliformes totais de 10 a 100 NMP/g, máximo de 10 NMP/g de coliformes a 45°C e estafilococos coagulase positivo entre 10 a 100UFC/g. Pro sua vez, o creme de leite UHT deve apresentar contagens máximas de aeróbios mesófilos (após incubação a 35°C por 7 dias) de 100 UFC/g. a RDC 12/2001 da ANVISA, por outro lado, estabelece que creme de leite UAT, após 7 dias de incubação a 35-37°C, em condições normais de armazenamento, não deve apresentar microrganismos patogênicos e causadores de alterações físicas, químicas e organolépticas do produto.

 

Verificam-se algumas variações quanto às classes de microrganismos que devem ser controlados para creme de leite pasteurizado entre as normas já citadas e a RDC 12/2001 as ANVISA. Esta última estabelece máximo de 10 NMP/g de coliformes a 45°C, máximo de 100UFC/g de estafilococos coagulase positivo e ausência de Salmonela SP/25 g para os produtos citados.

 

Embora sejam relevantes para as características sensoriais ou organolépticas do creme de leite e seus derivados, classes de micorganismos como psicrotróficos e esporulados não são normatizados pela legislação brasileira.

 

Processos industriais

 

Matéria-Prima

 

Os lipídios no creme, assim como no leite, estão na forma de glóbulos de gordura com diâmetro variando de 0,5 a 10 mm envoltos pela membrana do glóbulo de gordura (MGG). As propriedades físico-químicas do creme dependem de vários fatores como o estado dos glóbulos de gordura e da MGG, a concentração de glóbulos de gordura, a temperatura do creme, sua manipulação (tipo de tratamento térmico, mecânico), tipo e a concentração de sólidos lácteos não gordurosos no creme (proteínas, sais e estabilizantes e emulsificantes adicionados) (SMIDDY et al, 2009).

 

Os glóbulos de gordura do leite são cobertos por uma rede difusa de compostos bipolares que são fosfolipídios, proteínas, diacilgliceróis, monoacilglicerís e outros materiais tensoativos proveniente de célula da glândula mamária ou do leite (KEENAN et al, 1999).

 

Sempre que se trata de gordura láctea, é quase inevitável a menção da presença de colesterol. Este é o principal esterol do leite, representando mais de 95% do total destas substâncias. Contudo, a quantidade proporcional de colesterol em relação ao total de lipídios do leite é baixa quando se compara a outros alimentos. A maior parte do colesterol está na sua forma livre, com menos de 10% na forma de ésteres do colesteril. Em quantidades pequenas têm-se, ainda, vários outros esteróis, incluindo os hormônios esteróides, e hidrocarbonetos. Dentre os hidrocarbonetos destacam-se os carotenóides. Em termos quantitativos, os carotenóides ocorrem em traços no leite, isto é, cerca de 200 mg/L. Contudo, contribuem com 10 a 50% da atividade de vitamina A e são responsáveis pela cor amarela da gordura do leite. O teor de carotenóides do leite varia com as estações e com a raça, sendo também dependente do teor de carotenóides da dieta do animal. Há raças cujo leite contém de 2 a 3 vezes mais b-caroteno que outras. Quando a dieta do animal contém vegetação fresca (pastagens), é mais rica em carotenóides do que nas situações em que os maiores constituintes da dieta são forragens, concentrados de cereais e produtos relacionados. Quanto maior o teor de carotenóides da dieta do animal, mais amarela será a cor do leite e de sua gordura (Kailasapathy, 2008; FOX. McSWEENEY, 1998).

 

O leite bovino contém, em geral, 3,5% de gordura. Devido ao valor econômico, sempre houve pressão comercial para aumentar a quantidade de gordura no leite das vacas por meio nutricionais ou genéticos. Este nível varia bastante em função da raça, do estágio da lactação, dos indivíduos da mesma raça, da estação do ano, das condições nutricionais do aninmal, do tipo de alimentação, do estado de saúde e da idade do animal, dos intervalos entre as ordenhas e do período da ordenha em que se toma a amostra para análise (JENSEN, CLARK, 1999; FOX, McWEENEY, 1998)

 

O creme de leite apenas será matéria prima adequada se o leite usado em sua produção também o for. Para isso, o leite deve ser obtido de animais saudáveis, bem nutridos, usando ração ou pastagem sem contaminantes. O leite deve, ainda, ser ordenhado em condições de higiene adequadas e resfriado logo após a ordenha. O creme de leite deve ser separado e tratado termicamente no menor tempo. Assim, evitam-se grandes períodos de estocagem refrigerada do leite ou do creme cru, quando os microrganismos podem suas proteases e lípases que não são facilmente destruídas nos tratamentos térmicos usuais.

 

Etapas de fabricação

 

A tecnologia básica para a preparação de creme de leite e derivados é universal para quase todos os produtos de creme industrializados. Compreende as etapas de separação entre a face creme e a face leite, a padronização do creme para o teor de gordura desejado e o tratamento térmico para aumentar sua vida de prateleira. Outro processo que ocorre após a separação, a homogeneização, é aplicado apenas para certos produtos de creme de leite, em geral para aumentar a vida de prateleira ou melhorar a textura. O creme que será usado para fabricação de manteiga e chantilly, por exemplo, não deve ser homogeneizado. O creme de leite pode ser pasteurizado, esterilizado pelo sistema UAT/UHT ou esterilizado em latas. (SMIDDY et al. 2009).

 

Originalmente o creme era separado do leite integral por gravidade. Para os padrões modernos, contudo, a separação gravitacional é ineficiente e a separação centrífuga é usada, sendo a força centrífuga gerada por rotação. Sob sua influência, os sedimentos e os glóbulos de lipídeos são separados para o exterior ou interior dos canais de separação, de acordo com sua densidade em relação à fase desnatada. A separação entre o creme e o leite integral envolve a concentração dos glóbulos de gordura do leite, seguida da remoção do creme da fase  desnatada, o que produz dois fluxos ou correntes de saída: de leite desnatado e de creme (HUPPERTZ, KELLY, 2006; SMIDDY et al, 2009). O leite desnatado, em geral, tem um residual de gordura de 0,1g/100g com glóbulos de gordura pequenos com menos de 0,1mm de diâmetro.

 

Como os separadores tradicionais não apresentam grande precisão no teor de gordura do creme separado, era necessário produzir, primeiramente, um creme com alto teor lipídico. Este material era coletado e misturados em tanques de creme a partir dos quais ele era amostrado para análise. O método de Gerber era normalmente usado para determinar o teor de gordura do creme, que era, então, reduzido pela adição de leite desnatado ao creme, em um processo chamado padronização.

 

O objetivo da padronização é produzir creme com teor de lipídeos definido, garantido. Atualmente a padronização em linha é, em geral, combinada com a separação. O equipamento que faz a padronização monitora automaticamente e controla o teor de gordura do creme. Este teor deve ser ajustado o mais próximo possível daquele definido para o produto, pois o excesso traz perdas econômicas e teores abaixo daqueles determinados podem não atender as exigências legais. Durante a padronização, a temperatura do creme pode estar acima de 40°C e pode haver crescimento microbiano. Assim, é essencial que ela seja realizada o mais rápido possível (SMIDDY et al, 2009). Da mesma forma, a pasteurização (ou outro tratamento térmico) e o resfriamento devem acontecer logo após a padronização.

 

Para reforçar a importância da padronização e os problemas que sua realização inadequada trazem, RIBEIRO-JÚNIOR et al (2012) analisaram 14 marcas de cereme de leite UAT, sendo coletadas três amostras de cada marca, em um total de 42 amostras. Na análise de gordura 26,19% não apresentaram a porcentagem expressa na embalagem do produto, e os outros 73,81% apresentaram a porcentagem esperada no no rótulo ou valor superior. Stephanet al. (2011) analisaram 27 amostras de nove marcas diferentes de creme de leite UHT comercializado no Brasil. E o teor médio de gordura foi de 20,3% m/m de matéria gorda.

 

Todos os produtos de creme são tratados termicamente, sobretudo para inativar micro-organismos deteriorantes e patogênicos, além das enzimas. Essa inativação pelo calor confere segurança e aumenta a vida de prateleira. Os efeitos do aquecimento dependem, principalmente, da intensidade do tratamento térmico (WALSTRA et al, 2006). Para o creme, tanto a pasteurização HTST (high temperature short time) como o tratamento UHT são comumente aplicados. O alto teor de gordura protege os microrganismos, o que leva a necessidade de tratamento térmico mais intenso do que aquele aplicado ao leite. Para a pasteurização HTST do creme, o binômio 75° por 15 segundos para creme contendo mais de 20 g/100g de lipídeos é recomendado pela Federação Internacional de Laticínios, “Internactional Cairy Federation” (IDF, 1996). Para produzir o creme de leite pasteurizado, após o tratamento HTST, pode-se homogeneizar o produto. A maioria das células vegetativas, incluindo patogênicos, leveduras e fungos, é inativada pela pasteurização, mas algumas bactérias termodúricas, incluindo as esporuladas como oBacillus spp, resistem à pasteurização (EARLY, 1998).

 

Quando o creme é tratado pelo sistema UHT (ultra high temperature), as características físico-químicas e microbiológicas da matéria prima são importantes devido à vida de prateleira mais longa do produto. O processamento UHT envolve tratamento térmico a 135-150°C por poucos segundos, ocorrendo inativação dos microrganismos patogênicos e deteriorantes com mudanças químicas, físicas e sensoriais mínimas. O tratamento UHT do creme não gera, necessariamente, um produto estéril, pois os esporos de Bacillus spp podem resistir. As enzimas endógenas do leite – lípase lipoprotéica e plasmina – causam lipólise e proteólise, respectivamente, durante a estocagem. Embora a lípase seja inativa pela pasteurização, a plasmina mantém atividade mesmo após o tratamento UHT. Além disto, algumas lípases e proteases bacterianas podem resistir ao tratamento UHT. A produção de enzimas bacterianas deve ser prevenida no creme que será tratado pelo sistema UHT. No tratamento UHT/UAT (ultra alta temperatura), podem-se alcançar taxas de letalidade bacteriana equivalentes ao tratamento térmico do creme de leite esterilizado nas latas, com reduções significativas em mudanças químicas, como a reação de Mailard, pelo aumento da temperatura de tratamento térmico e redução do tempo de exposição (por exemplo, 142°C/4 segundos).

 

A vida de prateleira do creme de leite UHT é substancialmente mais curta que a do leite, mesmo quando a proteólise está ausente. Para creme UHT simples (18% de gordura), a principal reclamação do consumidor, segundo Muir, Banks (2003), refere-se à formação de partículas ou agregados que flutuam quando o creme é adicionado ao café quente. O problema tem sido identificado com uma agregação induzida pelo cálcio, e que pode ser contornada pelo uso balanceado de estabilizantes que interagem com o cálcio. Na prática comercial, adições de carbonato de sódio e citrato trissódico mostraram-se eficientes para aumentar o período até o início do aparecimento destes agregados no café quente. A maioria dos cremes de leite UHT, bastante comuns no Brasil, passa por homogeneização, exceto aqueles com indicação para serem usados para batimento e produção de chantilly. A temperatura de estocagem também apresenta efeito significativo na vida de prateleira do creme e não, necessariamente, sobre a estabilidade bacteriológica. A refrigeração aumenta marcantemente a vida de prateleira (MUIR, BANKS, 2003).

 

A vida de prateleira do creme esterilizado é determinada por reações químicas envolvendo minerais e proteínas. As deteriorações bacteriológicas e enzimáticas não são comuns em produtos esterilizados em latas devido à intensidade do tratamento térmico. O creme de leite esterilizado em latas pode ou não ser homogeneizado, dependendo da indicação de sua aplicação. Os sais de sódio de ortofosfato, carbonato e cittrato são estabilizantes que inibem as interações cálcio-proteina com considerável sucesso. Além disso, a estocagem à temperatura de refrigeração tem efeitos benéficos – a separação de soro é quase completamente inibida e a viscosidade é aumentada. Há poucas alterações na textura do creme se o mesmo é estocado a 6°C, mas grandes problemas podem ocorrer se o produto for congelado (MUIR, BANKS, 2003; WEIHRAUCH, 1999).

 

O objetivo da homogeneização é prevenir ou, ao menos, minimizar, o fenômeno da separação do creme. Esta separação é evitada pela redução do tamanho dos glóbulos de gordura, que levarão um tempo muito longo para se reagruparem, gerando a separação do creme. Alterações nas características do creme e derivados e a fabricação de produtos com novas estruturas são possíveis pela seleção dos parâmetros de homogeneização adequados (SMIDDY et al, 2009). Embora a homogeneização seja essencial para alguns tipos de creme, para os que serão destinados para bater chantilly ou fabricar manteiga ela não é indicada. O creme não deve ser homogeneizado para batimento de chantilly, pois as partículas pequenas de gordura dificultarão a formação da estrutura de espuma necessária para estabilização do chantilly. Já na fabricação de manteiga as pequenas partículas de gordura do creme homogeneizado inviabilizam a inversão de fase necessária para a produção de manteiga.       

 

Produtos contendo creme azedo ou fermentado são preparados pela fermentação de creme fresco e têm muitos usos, inclusive como condimento ou integrante em molhos em geral. O teor de gordura do creme azedo pode variar de 10 a 40 g/100 g (SMIDDY et al, 2009). Após a separação e a padronização do creme, o teor de sólidos pode ser aumentado. Estabilizantes, como caseinatos ou hidrocolóides, podem ser adicionados para melhorar a textura e prevenir a sinérese. O creme é, então, aquecido a 85 – 95° C por 15 segundos a 30 minutos, ou por poucos segundos a 120 – 130°C. Ocorre, na sequência, a himigeneização. Se feita logo após o tratamento térmico, ela permite melhor textura do que quando realizada em etapas posteriores do processo. Para cremes de alto teor de gordura, as pressões de homogeneização devem ser mantidas baixas para evitar a formação de grumos. Os glóbulos de lipídeos homogeneizados participam diretamente do processo de coagulação ácida e da rede estrutural do produto fermentado. Após a homogeneização, o creme é resfriado à temperatura de inoculação que varia de 20 a 40°C. A fermentação é, então, iniciada pela adição de bactérias láticas mesofílicas. As culturas mesofílicas comumente uadas são Lactococcus lactis subsp. Lactococcus lactis subsp cremoris, Lactococus lactis subsp lactis var. diacetylactis Leuconostoc mesenteroides subsp cremoris. Também o Lactobacillus acidophilusvem sendo bastante usado por seu status probiótico (SIMIDDY et al, 2009). 

 

Conclusões

 

O mercado de creme de elite no Brasil ainda dispõe de poucas opções de produtos. Há, basicamente, creme de leite UAT e sua versão light (com teor reduzido de gordura), creme de leite pasteurizado, nata e poucas opções de creme azedo (sour cream). Por outro lado, este quadro representa grandes possibilidades para inovação por parte de laticínios que produzem creme de leite. 

 

O conhecimento dos fundamentos físico-químicos, microbiológicos e bioquímicos relacionados à fração lipídica do leite é essencial quando se pretende fabricar creme de leite e derivados. Além disto, estes fundamentos são relevantes para elaborar padrões de identidade e qualidade. Muito dos aspectos científicos aqui expostos têm origem em países europeus, nos Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e outras nações que há décadas, ou séculos, preocupam-se em estabelecer padrões de identidade bastante detalhados para os produtos lácteos.

 

Se o Brasil pretende tornar-se um grande exportador de produtos lácteos, como já é em produtos cárneos, precisa contar com padrões de identidade e qualidade definidos pela legislação devidamente detalhados. Estes padrões devem também ser atualizados com maior freqüência para que a regulamentação acompanhe as novas categorias de produtos que são criadas para atender as exigências do consumidor.

Autores: Patrícia Blumer Zacarchenco, Leila Maria Spadoti, Adriana Torres Silva-Alves e Ariene Gimenes Fernandes Van Dender.

Fonte: Revista Leite & Derivados n° 147 – Ano XXII  Maio/Junho 2014

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Autor: Patrícia Blumer Zacarchenco, Leila Maria Spadoti, Adriana Torres Silva-Alves, Ariene G. F.Van Dender

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