19/10/2011 às 08h12min - Atualizada em 19/10/2011 às 08h12min

Conceito de ética aplicado às questões ambientais

1. Introdução

 

Nos dias de hoje, muitos citam a palavra "ética", mas, quando perguntados, não conseguem explica-la nem defini-la. Por isso, o objetivo do presente artigo é colocar o conceito de Ética em crise com a intenção de torná-lo mais radical e profundo.

 

Num primeiro momento, ética lembra-nos norma e responsabilidade. Dessa forma, falar de ética significa falar de liberdade, pois não há sentido falar de norma ou de responsabilidade se não partirmos da suposição de que o ser humano é realmente livre, ou pode sê-lo.

 

A norma diz-nos como devemos agir. E, se devemos agir de tal modo, é porque também podemos não agir deste modo. Isto é, se devemos obedecer, é porque podemos desobedecer ou somos capazes de desobedecer à norma.

 

Também não haveria sentido falar de responsabilidade, palavra que deriva de resposta, se o condicionamento ou o determinismo fosse tão completo a ponto de considerar a resposta como mecânica ou automática.

 

Se afirmarmos que o determinismo é total, não há o que falar de Ética; pois a Ética refere-se às ações humanas, e, se elas são totalmente determinadas de fora para dentro, não há espaço para a liberdade, como autodeterminação e, conseqüentemente, não há espaço para a Ética.

 

O extremo oposto ao determinismo, representado por uma concepção que acredita na liberdade total e absolutamente incondicionada, nega igualmente a ética, porque se resumiria apenas à liberdade de pensamento, sem a possibilidade de se agir, na prática, de acordo com os pensamentos.

 

Seria, então, uma liberdade abstrata, deixando que a liberdade real se resumisse a algo meramente interior.

 

Desta forma, vamos abordar a questão da ética de acordo com a concepção original da reflexão grega, que não é apenas teórica, mas que efetivamente se manifesta na conduta do ser humano livre.

 

2. Etimologia

 

Para a maioria das pessoas, Ética e Moral têm o mesmo significado, mas numa análise mais rigorosa, podemos constatar que são conceitos diferentes. Na realidade, podemos afirmar que não existem sinônimos. As palavras diferem, umas das outras, desde a origem, e só se aproximam no significado. Neste caso, porque as condutas morais acabam expressando um determinado tipo de postura ética.

 

O termo mos, do latim, dá origem à palavra "moral", relacionada aos costumes e hábitos, enquanto o termo ethos, do grego, dá origem à palavra "ética", relacionada ao modo de ser ou à maneira pela qual alguém se expressa. Portanto, servem para nomear duas disciplinas distintas, embora a primeira seja subordinada à segunda.

 

Os autores divergem, alguns afirmam que a Ética nada mais é do que a disciplina que estabelece regras de conduta para a sociedade por influência de fatores de ordem religiosa, política, econômica, enfim, ideológica. Sob este ponto de vista, o conceito tem sido usado em códigos de conduta profissional ou partidária, compostos de alguns elementos éticos que, na verdade, são conjuntos de normas que determinado grupo se dispõe a adotar.

 

Negam-lhe, assim, qualquer fundamento ontológico. Ao se tratar a Ética como Moral, e essa como religião, perde, aos olhos incrédulos dos homens da nossa época, o seu verdadeiro valor. Políticos, governantes, líderes religiosos e mesmo professores empregam a palavra "ética", nos seus discursos, para impressionar os ouvintes, tal o peso que ela contém, usando-a indevidamente, deslocada do seu real significado.

 

3. Semântica

 

A raiz da ética é de natureza antropológica e tem como objeto o ser humano inserido concretamente na vida prática. Mas é, também, no nosso entender, ontológica porque tem como objeto o posicionamento do ser, que exige reflexão, escolha e apreciação de valores.

 

A distinção entre Ética e Moral é mais nítida do que possa parecer à primeira vista, pois enquanto a Moral limita-se ao estudo dos costumes e da variante das relações humanas, a Ética, como disciplina filosófica, dedica-se à revelação de valores, que norteiam o dever-ser dos humanos.

 

Esses conceitos geralmente andam próximos e, por isso, têm sido empregados com significados diferentes, nos mais diversos contextos, mas interpretados pelo público no sentido comum. Portanto, é fundamental insistir na distinção entre ética e moral, para que possamos adequar nossa linguagem aos nossos pensamentos.

 

4. Diferença entre ética e moral

 

Moral é o conjunto de regras que se impõem às pessoas por um impulso que move o grupo, numa ação coletiva que tende a agir de determinada maneira. É a consolidação de práticas e costumes, observadas no geral pelo receio de uma reprovação social. Partindo desse pressuposto, todo ser humano é moral ao cumprir ou deixar de cumprir as regras sociais, sem questionar.

 

Ética envolve reflexão, por isso não significa um conjunto qualquer de normas, mas sim, um conjunto de juízos valorativos, assumidos e manifestados livremente na ação individual de cada um. Essa reflexão é construída e reconstruída incessantemente até tornar-se compreensão e expressão do ser humano como exigência radical do dever-ser, como disposição permanente para agir de acordo com suas próprias exigências de realização do bem ou do melhor.

 

Os gregos referiam-se ao "ethos" como uma força de raiz ontológica, manifestada no indivíduo determinando sua conduta. Havia um significado profundo, relacionado a um modo de ser remetido ao princípio universal, pressupondo sempre que algo fala pelo humano, expressando algo maior e anterior a ele.

Dessa forma, a Ética grega, que também significa uma maneira de ser em sociedade, é um campo de reflexão que envolve investigação e questionamento a respeito da conduta humana que se determina a partir de princípios imutáveis.

 

5. Conseqüências da imprecisão

 

Essa incompreensão, predominante nos dias de hoje, é um fator de confusão e prejuízo para o próprio homem, porque este, desviado da visão nítida dos imperativos éticos, passou a compreender o dever-ser, face a si mesmo, ao seu semelhante e, também, à natureza, como apenas questões a serem reguladas por normas morais ou, com mais rigor, por normas legais, ambas estabelecidas por outros seres humanos, geralmente, de forma arbitrária.

 

Todos esses, que assim entendem, deixam de reconhecer que a verdadeira essência do homem continua sendo o dever-ser que se frustra diante da sua vontade. Assim, o que caracteriza a Ética é a postura assumida pelo dever-ser autodeterminado por convicção, estabelecendo seus próprios limites para a atuação no mundo.

 

6. Atualização do conceito de ética

 

Hoje, os limites da engenhosidade humana e da sua vontade dominadora foram suplantados pela biotecnologia, pela engenharia genética e pelo sonho de adiar indefinidamente a morte. Por outro lado, a ética moderna, fundada sobre uma determinada concepção das relações do homem com as tecnologias e com o ambiente, não corresponde mais às condições atuais, porque é uma ética centrada na neutralidade da ciência e voltada, única e exclusivamente, para servir ao próprio homem.

 

O presente, pela forma de agir do ser humano, coloca em crise a seguinte questão: a biosfera é objeto da responsabilidade humana e a técnica não é mais passível de ser considerada eticamente neutra, nem em relação ao meio ambiente, nem em relação à natureza humana. Da análise dessa questão, extrai-se que a natureza, também, torna-se objeto da responsabilidade humana.

 

As conseqüências das ações humanas ampliam-se no espaço, introduzindo na ética uma dimensão autenticamente planetária, e no tempo, projetando a responsabilidade humana sobre seu próprio destino e sobre a qualidade de vida das gerações futuras. O futuro, assim, torna-se responsabilidade para todos.

 

Estamos, assim, participando do nascimento de uma comunidade e de uma consciência planetária, na qual uma densa rede de interações está se formando, estendida e difusa, sobre a inteira superfície do planeta, interessando profundamente, nas formas mais imprevisíveis, à vida cotidiana de cada habitante da Terra.

 

7. O dever ético na civilização tecnológica

 

O empenho de cada cidadão, coletividade e autoridade na Terra passam a ser no sentido de começar a conceber e a viver esta comunidade planetária de maneira positiva, de modo a considerar uma trama global de interdependência como a única condição para garantir e melhorar a qualidade de vida dos povos, dos grupos e dos indivíduos. O objetivo torna-se o dever ético de construir uma civilização na Terra e de inaugurar uma evolução em direção à convivência pacífica e ao desenvolvimento sustentável.

 

A idéia central de ética para a civilização tecnológica, desenvolvida pelo filósofo alemão contemporâneo, Hans Jonas, constitui-se no dever e na responsabilidade do ser humano com relação à natureza e ao futuro das próximas gerações humanas sobre a Terra.

 

Seu ponto de partida é a maneira com que a técnica moderna equipa o agir humano, oferecendo novas possibilidades e alterando, essencialmente, o meio no qual se insere e desdobra os seus efeitos. Esse agir, compreendido como intervenção sobre a própria natureza, exige uma postura ética que seja adequada e proporcional à sua nova natureza, pela ordem de grandeza e de poder de que está investido pela tecnologia.

 

8. Novas dimensões da responsabilidade

 

Urge, então, estabelecer uma equação entre as novas possibilidades de ação e poder em relação às novas dimensões de responsabilidade que esse mesmo agir suscita. Essa responsabilidade, assim como o novo poder liberado pela tecnologia, não se restringe apenas ao sujeito individual. Seu verdadeiro destinatário é a prática coletiva, em que a preocupação básica diz respeito aos efeitos remotos, cumulativos e irreversíveis da intervenção tecnológica sobre a natureza e sobre o próprio ser humano.

 

Esse poder abriga uma dimensão ameaçadora e perigosa. O risco encontra-se no sucesso extraordinário do poder tecnológico, que envolve a possibilidade de desfiguração da natureza e do ser humano, em função do excesso de seu próprio poder. O reconhecimento do desconhecido e da incerteza, assim, torna-se de extrema relevância ética, pois deixa de ser um problema de mera existência, passando a ser de preservação da própria existência, contra a intervenção e a manipulação das tecnologias.

 

Em face desse risco, é preciso temer e reverenciar a natureza. Por isso, o objetivo principal da Ética Ambiental passa a ser o de reencontrar o ideal grego de medida, que vincula a ética à idéia de limite, moderação e contenção. As dimensões da responsabilidade assumem um novo papel e, sob essas novas condições, torna-se objeto de um imperioso dever, ampliando o papel que lhe fora atribuído pelas éticas anteriores, devendo ser comensurável às virtualidades da extensão causal do agir humano coletivo atual.

 

9. O risco do poder tecnológico

 

Tal situação de risco implica na necessidade de se conceder, em situações de incerteza, precedência ao pior diagnóstico, entre as perspectivas concorrenciais sobre as conseqüências da ação. Essa necessidade baseia-se nos princípios da prevenção e da precaução, recepcionados pela nossa legislação ambiental.

 

Considerando que o saber, que resulta das ciências e do progresso tecnológico, libera para o agir humano um potencial de forças tão extraordinário, que produz uma alteração no meio ambiente; e, considerando que os efeitos dessa intervenção estão investidos de um poder cumulativo de destruição, cujas conseqüências podem ser, e são de fato, irreversíveis, esse fato passa a incluir o conjunto da natureza na esfera da responsabilidade do agir humano.

 

10. A natureza adquire direito próprio

 

Reconhecer à natureza um direito próprio e uma significação ética, independente da sua condição de meio para a satisfação das necessidades e desejos humanos significa abandonar a postura tradicional que considera o humano como o ápice da natureza e coroa da criação, servindo de fundamentação ao dever de preservação das condições sob as quais se pode manter a sua essência.

 

Não estamos autorizados a por em risco a vida da humanidade. A simples existência de autêntica vida humana sobre a Terra apresenta-se como um valor, e a preservação das condições dessa existência como um dever a ser levado em conta pelas novas dimensões do agir humano. Não temos, portanto, o direito de escolher o não ser das futuras gerações, em proveito do ser da presente geração. Em função disso, o agir humano coletivo rende-se a uma obrigação, em face daquilo que ainda não é, ou em relação ao não existente que, enquanto tal, não pode sustentar qualquer pretensão à existência.

 

11. O grande desafio da humanidade

 

O novo dever ético não se dirige à ação do indivíduo isolado, mas ao agir coletivo. Seu destino não é a esfera das relações individuais, mas do domínio das políticas públicas, porque seus efeitos, na realidade, afetam toda a humanidade. É preciso, então, alcançar uma nova posição de poder sobre o poder, que seria o autodomínio do ser humano em relação à sua própria compulsão ao exercício tecnológico.

 

Esse novo poder, segundo Jonas, não emergiria do saber e da conduta privada, mas da sociedade como um todo e de um novo sentimento coletivo de responsabilidade e de temor. Esse é o grande desafio aos seres humanos da nova civilização tecnológica do Terceiro Milênio, em resposta à crise ecológica.

 

Neste sentido, os princípios da Ética Ambiental sugeridos pela Agenda 21, na ECO/92, são difíceis de praticar, exigem desprendimento e desapego para que se possa reconhecer a existência dos interesses difusos e soluções para conflitos globalizados, mas recuperam a visão de totalidade para a humanidade.

 

12. A Filosofia, a Educação e o Direito

 

Por todos esses motivos, nossa atuação futura deverá ser mais abrangente, passando por uma reflexão profunda e sistemática de certos temas éticos como: valor e responsabilidade, ultrapassando a esfera econômica por meio de uma política educacional e, por fim, se fazendo sentir obrigatoriamente, na prática, por meio da aplicação da lei que reconhece, expressamente, o direito das presentes e futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 

Porém, cabe à Filosofia mostrar que seria ilusório crer que apenas medidas legais e didáticas, ou de política econômica, ou mesmo transformações dos padrões energéticos seriam suficientes para superar a crise ecológica, uma vez que a carreira triunfal do pensamento técnico-científico e das transformações por ele provocadas assenta sobre valores ligados à atual relação homem-natureza.

 

13. Conclusão

 

A única possibilidade de mudança de postura em prol da natureza será fruto da autonomia da razão, única capaz de incorporar princípios éticos em cada indivíduo, até alcançarmos uma consciência ética coletiva, à medida que o vínculo com a autonomia de todos e a reconciliação com a natureza tornar-se uma motivação política atuante.

 

Será um exercício ético voltado para as questões ambientais, no qual haverá acordo e harmonia entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva global, que se realizará plenamente quando interiorizarmos certos valores, de tal maneira, que determinadas atitudes serão praticadas de forma espontânea e livre, sem nelas pensarmos, sem as discutirmos, sem delas duvidarmos, porque serão as expressões da nossa própria vontade.

 

Apenas desta forma, a Ética Ambiental poderá se tornar natural sem a necessidade da aplicação de normas legais, transformando-se na convicção e manifestação conjunta de todos os habitantes do planeta Terra.




Autor: Simone Vicente de Azevedo

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(*) Advogada em São Paulo. Pós-graduada em Direito Ambiental pelas Faculdades de Direito e Saúde Publica da Universidade de São Paulo (CEDA-II). Mestranda em Filosofia no IFCH - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas. Idealizadora do Programa Educacional Futuras Gerações. www.futurasgeracoes.com.br

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