06/08/2008 às 15h04min - Atualizada em 06/08/2008 às 15h04min

A hora e a vez do Leite de Qualidade

A Instrução Normativa nº 51 é apenas um item do pacote, do qual também constam certificação da qualidade, incorporação de tecnologia e maior estímulo ao produtor. Paulo do Carmo Martins.

No momento em que a Instrução Normativa nº 51 entra em vigor nos Estados do Centro-Sul do Pais, cumpre fazer um resgate histórico para entendermos a importância da qualidade do leite que as novas regras visam alcançar. Até meados do século passado, o grande desafio da humanidade consistia em gerar excedentes alimentares. Ao longo da história humana, a necessidade de produzir alimentos esteve sempre presente nos grandes confrontos humanos. O acesso ao alimento era algo tão difícil e precioso que a obesidade se traduzia em sinais exteriores de riqueza, ao passo que hoje é um problema de saúde pública em vários países.

A busca pelo alimento é a origem de alguns preconceitos. Por exemplo: o menor valor do trabalho feminino advém da época em que a produção de alimentos se dava preponderantemente pela força humana. O nascimento de uma mulher significava a frustração de mais braços disponíveis no processo produtivo. Aqui, cabe uma ressalva: se no passado tivéssemos a mesma visão da qualidade na pecuária de leite que temos hoje, talvez este preconceito não existisse, já que as mulheres, em termos atuais, têm provado ser ordenhadoras mais cuidadosas que os homens.

Voltando ao passado: no século XVIII, Thomas Malthus concluiu que a produção de alimentos era incompatível com o crescimento populacional, pois a oferta de alimentos tendia a crescer em proporção aritmética, enquanto a população tendia ao crescimento em proporções geométricas. Mesmo sendo defensor ardoroso do pensamento liberal, que pregava a supressão do Estado na definição da conduta das pessoas, Malthus defendia que somente deveria ter direito ao casamento aquele que demonstrasse a capacidade de alimentar a si próprio e aos seus.

Somente em meados do século XX, com a introdução de conhecimentos e novos produtos advindos da química, da biologia e da mecânica, foi possível ?espantar? os preceitos malthusianos e ter a certeza de que era possível alimentar toda a população mundial. A chamada ?revolução verde? assegurou em definitivo essa premissa, a ponto de fazer com que os alimentos entrassem em queda contínua de preços, em função do aumento da oferta.

Foi nesse ambiente de crescimento contínuo de excedente agrícola que o economista Schultz entendeu que a tão sonhada industrialização, como sinônimo de desenvolvimento econômico, somente seria possível se a agricultura de um país viabilizasse o crescimento contínuo da produção de alimentos e fibras a custos cada vez menores, ao mesmo tempo em que assegurasse a inserção contínua desse país no mercado internacional como forma de garantir a entrada de divisas, além de liberar grande volume de trabalhadores para atividades urbano-industriais.

Por trás dessa visão, está a manutenção do pressuposto de aumento contínuo da produção agrícola. Se no período pré-capitalista o aumento de produção era requerido com o propósito de assegurar a paz interna, o equilíbrio da nação e a manutenção do status quo, no século passado, a permanência da pressão sobre o setor agrícola se dava pela necessidade de esse setor sustentar o crescimento econômico nos países em processo de modernização.

Atualmente, como podemos exemplificar com a Instrução Normativa nº 51, o objetivo crescente dos governos e das empresas tem sido o de garantir a qualidade dos alimentos disponíveis. Ainda que o comercio internacional de alimentos esteja aquém de sua capacidade, dadas as barreiras não-tarifárias, ou também por este motivo, é que a questão da qualidade vem ganhando cada vez mais importância nos últimos anos.

Por um lado, exigências sanitárias são colocadas como mecanismos para inibir a entrada de produtos importados. Por outro, as empresas vêem na questão da qualidade uma forma de diferenciação de seus produtos, um instrumento para expandir seus mercados. Esta estratégia de marketing da industria se apóia no fato de o consumidor, cada vez mais, revelar interesse na questão da qualidade do alimento, buscando conhecer detalhes nutricionais e de segurança do que adquire.

Países desenvolvidos próximos da saturação.

Nos próximos quinze anos, certamente a busca por qualidade irá se elevar ainda mais. Os países desenvolvidos não têm apresentado significativa elevação na produção de alimentos, caracterizando que, se não atingiram o ponto de saturação na produção, estão muito próximo disso. Também não corre elevação no consumo per capita de ingestão de proteínas. Nesse quadro de estabilidade ou de saturação de produção e consumo, o natural é que o consumidor revele, cada vez mais, o interesse em consumir alimentos saudáveis, nutracêuticos e funcionais.

Por seu turno, nos países em desenvolvimento, há um contínuo crescimento da produção de alimentos. Isso se deve ao fato de ainda haver nesses países demanda reprimida por alimentos. Com o crescimento da renda per capita, é natural que também cresça a demanda, o que estimula o aumento da produção, facilitado pela incorporação de novas técnicas.

Ocorre que os países em desenvolvimento têm como marca a desigualdade na distribuição de renda. Isso significa que, nesses países, há um significado grupo que prioriza principalmente o crescimento da oferta. Todavia, há um outro grupo que mantém expectativas similares às da população de países desenvolvidos, e almejam, portanto, produtos saudáveis. Esse grupo é, naturalmente, mais relevante sob a ótica do consumo medido em unidades monetárias por unidade quantitativa de consumo. Em outras palavras, reais por quilo, por exemplo.

Neste cenário, se uma empresa tem seu enfoque somente no mercado internacional, os sinais que ela capta são claramente de buscar ganhos no que o consumidor considera como atributos de qualidade. Se a empresa não tem seu enfoque no mercado externo e se dedica somente ao mercado interno, também terá de priorizar ações que assegurem ganhos de qualidade. Do contrário, poderá a melhor fatia de mercado, representada pelos consumidores domésticos que demandam qualidade. Estes tenderão a ser atendidos pelas empresas hídricas, ou seja, que se dedicam ao mercado internacional e nacional ou serão atendidos por importações.

Nos próximos quinze anos, certamente, a busca por qualidade irá se elevar ainda mais.

No que diz respeito ao leite, o Brasil é um grande produtor mundial. Até 2004, sua importância se revelava como importador. Quando ocorreu o fim do tabelamento de preços, o setor de lácteos passou por um processo de ?desengessamento?. A partir de 1994, com a adoção do câmbio supervalorizado como estratégia de combate à inflação, somada à redução das exigências para importação, o que incluiu redução de procedimentos burocráticos, houve uma maior facilidade de entrada de produtos lácteos do exterior, o que significou maior competição nesse segmento do mercado brasileiro.

Ao racionalizar a captação, a resposta da indústria foi rápida e eficaz.

A reação da indústria brasileira foi rápida e eficaz, adotando métodos de racionalização na captação de leite, buscando a otimização no processamento e investindo em canais de comercialização mais eficientes. Na captação, no processamento, na distribuição e na fixação de marca, a busca foi por ganhos significativos de escala. Foi nesse contexto que, efetivamente, surgiu a lógica de cadeia produtiva, ao inserir como prática administrativa os conceitos de logística integrada.

Para o produtor, a busca por qualidade representa questão de sobrevivência.

Caso esses procedimentos não tivessem sido adotados e em velocidade exemplar, seguramente, o Brasil teria elevado ainda mais sua participação no mercado internacional de lácteos como comprador. Vencida esta etapa, o que se viu foi a mudança de importador para exportador líquido, mesmo em situação em que a moeda nacional se mostra bastante supervalorizada, por quaisquer indicadores de aferição que sejam utilizados.

- Produtos que atendam à demanda do consumidor

Mirando o futuro, há que se preparar para os novos desafios. O consumidor mundial requer produtos que tenham efetiva certificação, que garantam que o alimento lácteo é seguro e inócuo. Além disso, sob a ótica de mercado, há que se ofertar novos produtos que atendam aos atributos demandados pelo consumidor, o que significa ser saboroso, não levar o ganho de peso, assegurar não ser fonte de envelhecimento (ao contrário!), e ser cada vez mais barato em relação a outros produtos vegetais ou sucos.

Por outro lado, as empresas de laticínios necessitam, incessantemente, acrescentar ao leite que captam ingredientes que, ao corresponderem aos atributos demandados pelos consumidores, assegurem agregação de valor. Além disso, é cada vez mais necessário que as empresas retirem do leite compostos químicos que se caracterizem como subprodutos e, sob esse aspecto, também configurem como outras receitas, o que se caracterizaria também como agregação de valor ao leite captado, ou seja, enquanto matéria-prima. É ainda necessário que continue a busca incessante pelo aumento do rendimento industrial, o que só se consegue aumentando a qualidade do leite produzido na fazenda.

No que se refere ao produto, a busca pela qualidade do leite se traduz em garantia de sobrevivência na atividade. Se a matéria-prima não corresponde ao que é requisitado pela indústria, que precisa se manter competitiva, esse leite não será adquirido pelos laticínios. Afinal, no processo de coordenação de cadeia produtiva, um dos agentes percebe a necessidade de mudança e padroniza a qualidade a ser apresentada pelos membros que interam a cadeia, a montante e a jusante. Quem não satisfaz o que é exigido, está, necessariamente, fora do processo.

Em economia, há mudanças de comportamento que são passageiras; são modismos de época, são conjunturais. Outras são perenes, vêm para ficar, são estruturais. O difícil é separar umas das outras. Os produtores que, em meados dos anos 90, tiveram a oportunidade de adquirir tanques de resfriamento em condições muito facilitadas e não adquiriram, entenderam que era passageiro o que era, de fato, estrutural. Neste momento, ou estão fora do mercado ou amargam perdas por terem adquirido tanques, posteriormente, em outras condições.

Vencida a barreira da busca pela qualidade, a qualidade é a pedra de toque de ocasião. É uma mudança estrutural, que veio para ficar. Cada vez mais, os consumidores buscarão mais informações sobre o que consomem, e cada vez mais, terão acesso a informações de modo facilitado. Tenderá a crescer, portanto, a demanda por produtos certificados. Essa certificação poderá ser feita por governos, por entidades idôneas da sociedade civil ou mesmo pela confiança que uma marca desperta. Neste três casos, as empresas de laticínios terão de se adequar. Isso significa novos investimentos em novos produtos, em processos que assegurem que não há danos ao meio ambiente, que o consumidor está ingerindo produtos saudáveis. E será feitoto do o esforço necessário para que a cadeia do leite trabalhe nesse sentido.

Existem, todavia, obstáculos a serem rompidos. Um deles é o cumprimento efetivo da referida Instrução Normativa. Outro diz respeito à adoção de pagamento que efetivamente seja estimulante ao produtor. Um terceiro diz respeito à necessidade de assegurar estrutura mínima de certificação de qualidade, o que passa por investimento na Rede de Laboratórios de Qualidade do Leite. Por fim, está o relacionado com a política tecnológica, que precisa urgentemente incorporar a qualidade do leite como novo valor. Um valor, sem dúvida, estrutural, que veio para ficar. 

Paulo do Carmo Martins é chefe geral da Embrapa Gado de Leite, de Juiz de Fora ? MG


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