18/09/2012 às 14h05min - Atualizada em 18/09/2012 às 14h05min

Legalidade ainda que tardia

O Estado de S.Paulo

Aos poucos, ela foi sumindo dos cardápios. Relatos de sua aparição, apenas nos livros de Eça de Queiroz e de Jorge Amado. A galinha de cabidela, que tem também o apelido de galinha ao molho pardo, é uma das vítimas do rigor da legislação sanitária para produtos de origem animal.

Brasil afora, quem procurar talvez ache o prato onde a fiscalização é mais branda. Mas em cidades como São Paulo, é raridade. A Coordenação de Vigilância em Saúde do município está de olho nos estabelecimentos que oferecem a tradicional galinha. 

Só se pode abater a galinha em local que atenda às especificações do Riispoa, certificado pelo Ministério da Agricultura, classificados como matadouros. Porém neles, o sangue não pode ser comercializado fresco - como pede a receita da galinha de cabidela. Não existe qualquer especificação do modo como o sangue poderia ser embalado e vendido. Assim, restaurantes não têm autorização de abater o animal e não encontram o sangue no mercado (só no paralelo) e ainda são notificados se servirem galinha de cabidela. 

O queijo canastra de Minas já virou patrimônio imaterial reconhecido pelo Iphan. Já foi tema de documentário. Mas, ainda assim, não se pode fazê-lo cruzar a fronteira do Estado - pelo menos não legalmente. A informalidade prospera nesse mercado.

Para ser comercializado entre estados, todo produto de origem animal tem que ter um carimbo do Serviço de Inspeção Federal (SIF), ligado ao Ministério da Agricultura. 

A questão é que pequenos produtores não conseguem se adequar às exigências industriais para obter o SIF. E assim, queijos como o serro e o canastra de Minas chegam clandestinamente a São Paulo e Rio, os coalhos e o marajoara do Nordeste, o colonial e o serrano do Sul - todos feitos de forma artesanal e segundo tradições locais - sofrem para sair da ilegalidade muitas vezes até mesmo no próprio Estado. "Estamos nos organizando, aos poucos marcando território", diz João da Luz, supervisor da Emater-RS, que trabalhou no 1º Simpósio de Queijos Artesanais, em Fortaleza, no ano passado.

A abelha faz zum-zum e mel. Só que a legislação vigente no Brasil não leva em conta esse fato, pelo menos para as abelhas nativas, pelo menos por enquanto. Das centenas de espécies nativas, algumas sem ferrão, as chamadas Meliponinae, produzem mel muito saboroso e diverso. Na semana passada, a colunista do Paladar Neide Rigo contou como extrair o mel da jataí em casa e deu ideias de como usá-lo.

De fato, nos supermercados não se achará à venda o produto, pois o mel de abelhas nativas não atende aos padrões de umidade e concentração de açúcar que têm como referência o mel da Apis mellifera, espécie europeia (aquela listrada de amarelo e preto). Portanto, não é configurado como mel e não pode ser comercializado, a não ser que seja desidratado.

O problema do reconhecimento parece estar com os dias contados. O projeto da nova lei de produtos de origem animal (Riispoa), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), contempla enfim o mel de abelhas nativas. Só que a discussão não acaba aí. Segundo José da Cunha, presidente da Confederação Brasileira de Apicultura, há cerca de 350 mil apicultores e meliponicultores no País, dos quais 85% são agricultores familiares.

E o novo regulamento em discussão faz exigências técnicas que preocupam essa maioria que cultiva tanto a Apis quanto as abelhas sem ferrão." O pequeno produtor não tem como investir R$ 50 mil para construir uma estrutura que atenda às normas", diz. A CBA enviou na última semana reivindicações ao ministério.

O ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, autor do Manual Tecnológico: Mel de Abelhas sem Ferrão, saúda o prometido reconhecimento do mel nativo. "Mas não basta reconhecer e legislar. É preciso fomentar", diz Jerônimo, que ressalta a necessidade de entender o mel como produto de uma cadeia complexa de agricultura familiar e de reconhecer métodos tradicionais de trabalhá-lo. "Cada arranjo produtivo - tradicional, indígena, quilombola - é de um jeito. Claro que deve atender a padrão de higiene. Mas o problema é que o ministério entende esse padrão de uma forma asséptica inviável."

Como o Riispoa é um regulamento geral, o que preocupa Jerônimo é se os instrumentos normativos específicos, a serem editados depois, vão ter compreensão ampla sobre o mel de abelhas sem ferrão. E se haverá abertura por parte do Mapa para ouvir os pequenos produtores.

De acordo com Ricardo Camargo, da Embrapa, que coordena a Câmara Setorial do mel na discussão do novo Riispoa no ministério, os pequenos produtores serão escutados. Ele lembra que o Riispoa abarca várias cadeias produtivas, e os Regulamentos Técnicos de Qualidade específicos de cada setor é que vão, na prática, disciplinar a produção e comercialização dos produtos. "Estamos numa fase de transição geral de ter que mudar o Riispoa e revitalizar os regulamentos. É um desafio", diz.

Segundo Camargo, as principais demandas dos pequenos produtores são o reconhecimento de pequenas unidades de extração, às vezes montadas no quintal de casa, e a caracterização do mel extraído como matéria-prima, portanto, livre de inspeção antes de ser beneficiado em entreposto - como é praxe no mundo todo. Quanto ao mel de abelhas nativas, que por ser mais úmido é mais suscetível à proliferação microbiana, Camargo sugere a redução do prazo de validade para viabilizá-lo comercialmente.

Há 36 anos trabalhando com doces em Araxá, pequena cidade mineira, d. Gasparina vai pendurar os tachos de cobre. "Eles são muito bonitos. Vão virar relíquia. Vou lavar e dependurar", diz, resignada. O problema começou com a publicação em 2007 de uma resolução da Anvisa que proíbe o contato de alimentos com recipientes de cobre. "Chega freguês e diz que viu na televisão que é proibido. Aí não dá, não vou fazer escondido."

D. Gasparina diz que o cobre é fundamental para o preparo dos doces de mamão, figo e laranja-da-terra. Uma de suas especialidades, o doce de figo é dos que mais sofrem sem o cobre, pois fica opaco, sem o verde característico do doce. "No alumínio e no inox não tem condição", diz ela. "Essa tradição já foi. Duas fábricas pequenas aqui também fecharam. A dona de uma delas veio me oferecer os tachos, mas vou fazer o que com eles?" D. Gasparina herdou suas 17 panelas da avó do marido e da sogra. As três gerações fizeram doces no tacho de cobre e nunca tiveram reclamações da qualidade do produto, segundo ela. D. Gasparina garante que basta esfregar bem o tacho com vinagre e sal grosso para higienizá-lo.

A alternativa para quem quer persistir com a técnica tradicional é cara. José Renato Carneiro Mol, dono da goiabada Zélia, de Ponte Nova, também em Minas, mandou estanhar os tachos, por cerca de R$ 2 mil. E trocou a maioria das panelas por inox. Contratou uma empresa de nutrição para adaptar toda sua estrutura produtiva ao manual de boas práticas da Anvisa. "Devido às exigências sanitárias, ou você entra na norma ou sai do mercado." Na quarta geração produzindo a receita da goiabada, Mol diz ter aprovado o novo modo. "Tem que se adaptar, não dá para ficar brigando com a lei."

Segundo a Anvisa, no entanto, a norma que restringe o uso do cobre (editada como exigência de harmonização com o Mercosul) deve ser objeto de revisão. A própria agência afirma que propõe nova versão do regulamento, citando análises amostrais que indicam quantidade insignificante de cobre nos doces feitos com os tachos no País. Não há prazo para a atualização da norma. 

A madeira não é textualmente citada, mas, profissionais de cozinha sabem que a fiscalização sanitária recomenda não usar colher de pau, tábua de corte, rolo, pilão. E o fato é que os utensílios de madeira foram sumindo das cozinhas profissionais e gradualmente sendo substituídos por utensílios de plástico no mercado. 

Mas quem cozinha profissionalmente garante que o problema não é o equipamento, é a manipulação. A lei - mais exatamente a resolução 216, de 2004, da Anvisa - diz o seguinte: "As superfícies dos equipamentos, móveis e utensílios utilizados na preparação, embalagem, armazenamento, transporte, distribuição e exposição à venda dos alimentos devem ser lisas, impermeáveis, laváveis e estar isentas de rugosidades, frestas e outras imperfeições que possam comprometer a higienização dos mesmos e serem fontes de contaminação dos alimentos". Na prática, proíbe o uso da madeira.

A gerente-geral de Alimentos da Anvisa, Denise Resende, que participou do debate com chefs e especialistas durante o 6º Paladar-Cozinha do Brasil, diz que a Anvisa está consciente de que o uso dos equipamentos de madeira é tradicional na cozinha brasileira e reconhece a controvérsia na matéria. Mas sustenta que, de acordo com dados disponíveis, as superfícies plásticas, ainda que sejam mais facilmente arranhadas, são mais fáceis de higienizar e permitem maior controle do risco. A agência admite, ainda, não haver estudos conclusivos quanto à superioridade do plástico sobre a madeira. "Estamos abertos a rever nossos atos à medida que novas tecnologias ou novos dados científicos forem disponibilizados", diz.

 


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