07/03/2010 às 10h40min - Atualizada em 07/03/2010 às 10h40min

Algumas considerações sobre bactérias psicrotróficas - Parte II

Claudia Eugênia Castro Bravo - Martins, Márcia Aparecida Crivellari Porto, Heloíza Maria de Souza

3. Microrganismos Contaminantes 

Embora o resfriamento possa exercer um importante papel na melhoria da qualidade do leite, deve-se enfatizar que se a obtenção do mesmo não for feita higienicamente, pode haver comprometimento da qualidade do produto devido a proliferação de microrganismos psicrotróficos (Souza et al., 1999).

Sob o ponto de vista de deterioração, os microrganismos psicrotróficos são um grupo importante no leite, principalmente porque produzem enzimas que agem sobre os constituintes do leite causando alterações físico-químicas e organolépticas. Podem ser considerados como aqueles que são capazes de crescer em temperaturas igual ou inferior a 7oC, independente da sua temperatura ótima de crescimento (Shah, 1994). Com o emprego do sistema de refrigeração no transporte e estocagem do leite, esse grupo de microrganismos tornou-se uma das principais populações da microbiota desse produto (Champagne et al., 1994). Os microrganismos psicrotróficos representam não menos do que 10% da microbiota do leite cru, todavia eles crescem rapidamente e predominam no leite submetido a refrigeração (Shah, 1994). A população de microrganismos psicrotróficos pode representar de 70 a 75% de toda a microbiota do leite, se este for obtido em condições inadequadas de higiene. Estes microrganismos estão disseminados por toda a natureza, podendo estar presente no solo, água, vegetações e em menor proporção no ar. É raramente encontrado no úbere das vacas, a contaminação do leite normalmente ocorre devido a higienização inadequada de utensílios e equipamentos utilizados na obtenção do leite (Cox, 1993).

A maioria dos microrganismos psicrotróficos normalmente encontrados não é um problema sério, devido ao fato de serem eliminados pela pasteurização, entretanto, suas enzimas extracelulares são muitas vezes termoresistentes. O principal grupo de microrganismos encontrados no leite cru são bactérias Gram negativas, com grande incidência de bactérias do gênero Pseudomonas, principalmente a espécie Pseudomonas fluorecens (Sorhauh e Stepaniak, 1997). Várias espécies de bactérias Gram-positivas podem estar presentes em leite e derivados, no entanto constituem minoria. Arthrobacter, Bacillus, Clostridium, Corynebacterium, Lactobacillus, Listeria, Microbacterium, Micrococcus, Sarcina, Staphylococcus e Streptococus têm sido isolados do leite, com ênfase para os gêneros de Bacillus e Arthrobacter (Champagne et al, 1994).

As bactérias do gênero Bacillus são de ocorrência comum, sendo encontradas no solo, no ar, na água, em matérias-primas e em alimentos processados. As células vegetativas destes microrganismos são destruídas na pasteurização, entretanto, este tratamento térmico não elimina os seus esporos, podendo ativar a sua germinação (Andersson, 1995). A presença de bactérias esporogênicas psicrotróficas do gênero Bacillus em leite cru e pasteurizado foi descrita inicialmente por Grosskopf e Harper (1969) e, a desde então, diferentes espécies têm sido isoladas a partir de leite cru e pasteurizado (Meer et al., 1991; Griffiths e Phillips, 1990) bem como leite UHT (Schockhen-Iturrino, 1996) incluindo B. cereus (Giffel et al., 1996; Giffel et al., 1997; Larsen, 1997; Notermans, 1997), B. licheniformes, B. pumilus, B. lentus, B. circulans, B. mycoides (Griffiths e Phillips, 1990), B. subtilis (Sharma et al., 1984). Destes B. cereus é o mais importante, pois além de reduzir a vida de prateleira do leite pasteurizado, pode produzir toxinas.

4. Psicrotróficos e a produção de queijo

A qualidade de um produto está diretamente relacionada com a qualidade da matéria-prima empregada na sua elaboração. A microflora inicial influencia grandemente nessa qualidade do leite cru e conseqüentemente dos produtos com ele fabricados. As técnicas usuais de manuseio de leite cru freqüentemente resultam em altas contagens de psicrotróficos antes da fabricação de queijos, que através de suas atividades proteolíticas e lipolíticas produzem substâncias indesejáveis ao produto. Cousin (1982) observou um considerável aumento no nitrogênio total em soros de leites inoculados com psicrotróficos. Esses dados sugerem que os psicrotróficos podem ter vários efeitos sobre o rendimento do queijo. O rendimento do queijo ácido feito com leite inoculado com psicrotróficos diminui quando o nível de inoculação desses microrganismos aumenta. A redução do rendimento resulta tanto na degradação de lipídeos como de proteínas. 

As lipases produzidas pelos psicrotróficos são mais importantes no desenvolvimento de defeitos no sabor e aroma em queijos do que as proteases; isto porque as proteases são solúveis em água e são perdidas no soro, enquanto as lipases são adsorvidas pelos glóbulos de gordura, ficando retidas na massa do queijo (Fox, 1989). Hicks et al (1982) observaram também um aumento na acidez do leite contaminado por psicrotróficos durante a estocagem, levando a produção de queijos de acidez também elevada, o que também resulta em diminuição do rendimento de queijos.

Ternstron et al (1993) observaram que o crescimento de Bacillus fermentativos no leite, com concomitante produção de gás, podem representar problemas na produção de queijos. Segundo os autores, a intensa desnitrificação provocada pelos Bacillus diminui o efeito anti-clostridial do nitrato/nitrito adicionado na fabricação de queijos.

Considerando-se o importante papel que os microrganismos desempenham com relação a qualidade e conservação do leite e seus derivados, torna-se de grande interesse o conhecimento mais detelhado desses grupos e/ou generos de microrganismos comumente envolvidos de forma benéfica, como aqueles responsáveis por fermentações indispensáveis na fabricação de vários produtos, ou de forma maléfica, causando defeitos e deteriorações das mais diversas.

5. Enzimas Proteolíticas

As enzimas proteolíticas podem ter aplicação potencial em laticínios, como o largo uso de renina na fabricação de queijos. Pode ainda produzir hidrolisados de caseína, peptídeos fisiologicamente ativos como resultantes da hidrólise da b-caseína e, também, modificar a funcionalidade das proteínas por hidrólise limitada, para utilização na indústria de alimentos (Fox, 1993).

As enzimas proteolíticas, ou proteases incluem as proteinases, que promovem a hidrólise da molécula de proteína em polipeptídeos; e as peptidases que hidrolisam estes fragmentos à aminoácidos (Frazier e Westhoff, 1988). Essas enzimas têm ação sobre as proteínas do leite, principalmente sobre as caseínas, podendo acarretar gosto amargo do leite devido à liberação de peptídeos (Shinoda et al., 1985). Embora a grande maioria dos microrganismos deteriorantes seja destruída pela pasteurização, essas enzimas extracelulares são bastante termo-estáveis (Griffiths et al., 1981). São capazes de resistir até o tratamento U.H.T., representando um risco para produtos que tenham vida de prateleira intermediária ou longa (Stead, 1986). E em se tratando do leite esterelizado pelo processo UHT, as proteases assumem importância pelo seu papel na conservação desse leite, durante o período em que ele permanece armazenado. Tem-se a ação de enzimas produzidas por microrganismos psicrotróficos e de enzimas provenientes do próprio leite, como a plasmina e seu precursor plasminogênio.

Existem evidências de que há um modelo de indução-repressão para regular a produção extracelular de proteinases por bactérias Gram-negativas, que são induzidas por peptídeos e por alguns aminoácidos (ácido glutâmico e glutamina para Pseudomonas). As proteinases são reprimidas por formas facilmente metabolizadas de carbono como citrato, que não parecem ser mediadas por AMPc (adenosina monofosfato cíclica) nas espécies de Pseudomonas. O controle também é feito por certos aminoácidos. A produção de proteinases pode ser afetada por nutrientes minerais do meio que tem efeito, indiretamente, no metabolismo celular, como o cobalto e o zinco (Fairbairn e Law, 1986).

O ambiente também influencia na produção de proteinases; a temperatura ótima para crescimento de Pseudomonas sp é 200C a pH neutro, porém a produção de proteinases, freqüentemente, aumenta com a diminuição da temperatura. O efeito da temperatura de crescimento na síntese de proteases extracelulares por psicrotróficos em leite é dependente da espécie (Griffiths e Phillips, 1990). O oxigênio dissolvido e o pH também têm efeito na produção. Essas enzimas são sintetizadas e secretadas através da membrana, pelo ligamento de um péptide-sinal ao N-terminal do fim do poliptídeo. Várias espécies de Pseudomonas, quando presentes em número de 106 ufc/ml no leite cru, produzem metaloproteases neutras, extracelulares e termorresistentes, acarretando sérios problemas após o processamento, tanto para o leite fluído como para seus derivados (Fairbairn e Law, 1986).

As proteases produzidas pelos psicrotróficos podem, mesmo a baixas concentrações, hidrolisar as proteínas do leite causando sabor amargo e gelificação no leite UHT (Ultra Hight Temperature) interferindo em sua qualidade durante a armazenagem (Adhikari e Singhal, 1992).

6. Métodos Utilizados para o Controle do Crescimento dos Microrganismos Psicrotróficos

Vários métodos podem ser empregados para o controle do crescimento dos microrganismos psicrotróficos e prevenir ou reduzir a deterioração do leite e derivados (Champagne et al., 1994). Entre eles destacam-se:

· Resfriamento à temperatura mais baixa possível;

· Emprego de práticas adequadas de higiene durante todo o processo de produção do leite e seus derivados;

· Emprego do calor = pasteurizar quando a concentração de psicrotróficos ainda estiver baixa;

· Adição de bactérias lácticas no leite cru = Algumas bactérias são capazes de produzir substâncias antimicrobianas, como peróxido de hidrogênio e antibióticas (bacteriocinas), que possuem um importante papel no controle do crescimento dos microrganismos psicrotróficos;

·  Incorporação de gases no leite (N2 e CO2).

7. Conclusão

Com base na literatura consultada pose-se considerar que estes microrganismos são limitantes da qualidade de leite e derivados, pois as enzimas produzidas por eles, possuem considerável resistência térmica. As variações nas taxas de crescimento desses microrganismos durante a estocagem do leite cru podem ser explicadas pelas diferentes temperaturas e tempos de estocagem, época do ano e antimicrobianos naturalmente presentes no leite podendo influenciar na produção de enzimas.

Referências bibliográficas:

Adhikari, A.K.; Sighal, O.P. Effect of heat resistant micro-organisms on the fatty acid profile and the organoleptic quality of UHT milk during storage. Journal of Dairy Science, Indian, v.45, n.5, p.272-277, May, 1992.
Andersson, A; Rönner, U. Granum, P.E. What problems does the food industry have mith the spore-forming pathogens Bacillus cereus and Clostridium perfringens? International Journal of Food Microbiology, v.28, n.2, p.145-155, 1995.
Champagne, C.P., Laing, R.R., Roy, D., Mafre, A. & Griffiths, M.W. Psychrotrophs in dairy products: Their effects and their control. Critical Reviews in Food Science and Nutricion. v.34, n.1, p.1-30, 1994.
Cox, J.M. The significance of psichrotrophic pseudomonas in daity products. The Australian Journal of Dairy Technology,v.48, n.2, p.
Evangelista, J. Tecnologia de Alimentos. 2 ed. São Paulo: Atheneu, 652p. 1992.
Fairbairn, D.J. e Law, B.A. Proteinases of psychrotrophic bacteria: Their production, properties, effects and control. Journal of Dairy Research, v.53, p. 139-177, 1986.
Faria, J.A.F. Vida de prateleira de leite de consumo. Informe Agropecuário, Belo Horizonte, ano 12, n. 137, maio 1986.
FONSECA, L.F.L. da. Leite a granel: modelo moderno de estocagem e transporte. Revista Leite & Derivados, n.40, p.16-21. Maio/Jun. 1988.
Frazier, W.C. e Westhoff, D.C. 1988. Food Microbilogy, 4th ed. Mc Graw-Hill International Edition’s.
Giffel, M.C.T.; Beumer, R.R.; Bonestroo, M.H., and Roumbouts, F.M. Incidence and characterization of Bacillus cereus in two dairy processing plants. Neth. Milk Dairy J., v.50, p.479-492, 1996.
Giffel, M.C.T.; Beumer, R.R.;Granum, P.E. and Roumbouts, F.M. Isolation and characterization of Bacillus cereus from pasteurized milk in household refrigerators in the Netherlands. Int. J. Food Microbiol., v.34, p.307-318, 1997.
Gomes, H. A.; Gallo, C. R. Ocorrência de Staphylococcus aureus e produção de enterotoxinas por linhagens isoladas a partir de leite cru, leite pasteurizado tipo C e queijo “Minas frescal” comercializados em Piracicaba-SP. Ciência e Tecnologia de Alimentos, São Paulo, v.15, n.2, p.158-161, jul-dez., 1995.
Griffiths, M.W and Phillips, J.D. Incidence, source and some properties of psychrotrophic Bacillus spp found in raw milk and pasteurized milks. Journal Society of Dairy Technology, v.43, p.62-70, 1990.
Griffiths, M.W.; Philips, J.D. e Muir, D.D. Thermostability of protease and lipase from a number of species of psychrotrophic bacteria pf dairy origin. Journal of Applied Bacteriology, v.50, p.289-303, 1981.
Grosskopf, J.C.; Harper, W.J. Role of psychrotrophic sporeformers in long life milk. Journal of Dairy Science, 52 (suplement 1) p. 897, 1969.
Gurr, M.J. health and nutrition aspects of dairy products. Na up-to-the minute report Food Australia, v.44, n.0, p.421-426, 1992.
Hayes, P.R Microbiología e higiene de los alimentos. Zaragoza: Acribia. 369p. 1993.
Krug, E.E.B. et al. Manual da produção leiteira 2ed. Porto Alegre: CCGL, 716p, 1993.
Larsen, H.D.; and Jorgensen, K. The occurrence of Bacillus cereus in Danish pasteurized milk. Intl. J. Food Microbiol. V.34, p.179-186, 1997.
Maranhão, M. ISO série 9000. Manual de implantação. Rio de Janeiro, Qualitymark, 144p. 1993.
Meer, R.R,; Baker, J.; Bodyfelt, F.W., and Griffiths, M.W. Psychrotrophic Bcillus spp in fluid milk products: a review. Journal Food Prot., v.54, p.969-979, 1991.
Notermans, S.; Dufrenne, J.; Teunis, P.; Beumer, R.; Giffel, M.T.; and Weem, P.P. A risk assessment study of Bacillus cereus present in pasteurized milk. Food Microbiol., v.14, p.143-151, 1997.
Pelczar, M. J.; Reid, R.; Chan, E.C.S. Microbiologia. vol 2 São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1072p. 1981.
Rothery, B. ISO 9000. São Paulo: Mackron Boocs do Brasil, 168p. 1993.
Schockhen-Iturrino, R.P.; Nader Filho, A. Dimenstein, A.R. Ocorrência de bactérias esporuladas dos gêneros Bacillus e Clostridium em amostras de leite longa vida. Higiene Alimentar, v.10, n.42, p.25-7, 1996.
Shah, N.P. Psychrotrophs in milk: a review. Milchwissenschaft, v.49, n.8, p.432-437, 1994.
Sharma, J.K.; Malik, R.K and Mathur, D.K. Isolation and identification of proteolytic psychotrophic spore-forming bacteria from raw milk supplies at na experimental dairy in India. J.Soc. Dairy Technol., v.37, p.96-98, 1984.
Shinoda, I.; Fushimi, A.; Kato, H.; Okai, H. e Fukui, S. Bitter taste of synthetic C-terminal tetradecapeptide of bovine b-casein, H-Pro 196 – Val-Leu-Gly-Pro-val-Arg-Gly-Pro-Phe-Prolle-lle-Val209- Oh, and its related peptides. Agri. Biol. Chem., v.49, n.9, p.2587-2596, 1985.
Silva, P.H.F da; Portugal, J.A B.; Castro, M.C.D. e. Qualidade e competitividade em laticínios. Juiz de Fora: EPAMIG – Centro Tecnológico – ILCT, 1999. 116p.
Silveira, I. A. Estudo microbiológico do leite tipo B cru conservado sob refrigeração. Lavras: UFLA, 1997 84p. (Dissertação-Mestrado em Ciência dos Alimentos).
Sobrinho, F.F.; Coutinho, G.H.; Coura, J.D. Coleta do leite a granel. Belo Horizonte, MG, Fundação João Pinheiro, 1995 (dissertação de mestrado). 
Sorhaug, T. e Stepaniak, L. Psychotrophs and their enzymes in milk and dairy products: Quality aspects. Trends in Food Science and Technology,, n.8, p.35-41, 1997.
Souza, M.R.; Cerqueira, M.M.O.P.; Sena M.J.; leite, M.O.; Penna, C.F.A.M. Avaliação da qualidade do leite resfriado, estocado em propriedades rurais por 48 horas e recebido por uma indústria de laticínio. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, v.54, n309, p.238-241, 1999.
Stead, D. Microbial lipases: their characteristics, role in food spoilage and industrial uses. Journal of Dairy Research, v.53, p.481-505, 1986.
Veisseyere, R. Lactologia Tecnica: Composición, recogida, tratamiento y transformación de la leche. Zaragoza: Acribia. 629p. 1988.
Zadow, J.G. Extending the shelf lifw of dairy products. Food Austria, v.41, n.9, p. 935-937, 1989.


Link
Tags »
Comentários »
Fale pelo Whatsapp
Atendimento
Precisa de ajuda? fale conosco pelo Whatsapp