05/01/2017 às 10h42min - Atualizada em 05/01/2017 às 10h42min

A importância do consumo de leite no atual cenário nutricional brasileiro - Parte II

Olga Maria Silverio Amancio e outros
Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição

1. O PADRÃO ALIMENTAR BRASILEIRO
1.1. Alimentação na atualidade
A alimentação é uma necessidade básica para a vida, exercendo grande influência sobre todos os indivíduos, tanto no que diz respeito à saúde como também ao desempenho das atividades diárias (Mahan et al., 2012). O padrão alimentar está em transição no mundo e no Brasil. Ele é complexo e influenciado por diversos fatores como renda, custo dos alimentos, preferências individuais, crenças, tradições culturais, aspectos geográficos e socioeconômicos (WHO, 2003). No Brasil, nos últimos anos, as mudanças mais importantes nesse aspecto foram a redução do consumo de feijão (31%), raízes e tubérculos (32%) e ovos (84%), e o aumento de consumo de biscoitos (400%), refrigerantes (400%), carnes (50%) e leite (36%) (Levy-Costa et al., 2005). Observou-se também o aumento do consumo de alimentos com menor densidade nutricional, com maior concentração de energia, lipídios totais, açúcar e sódio (IBGE, 2010).

1.2. O consumo de leite e de cálcio no cenário alimentar brasileiro
Adotar uma alimentação variada é uma das mais antigas recomendações nutricionais, preconizada desde 1937 pelas leis da alimentação criadas por Pedro Escudero. Essa medida favorece o consumo equilibrado de alimentos de diferentes grupos permitindo, assim, que sejam atingidas as quantidades adequadas de ingestão de nutrientes  essenciais para a saúde (Credido, 2008).

O leite e seus derivados merecem destaque por constituírem um grupo de alimentos de grande valor nutricional, uma vez que são fontes consideráveis de proteínas de alto valor biológico, além de conterem vitaminas e minerais. O consumo habitual desses alimentos é recomendado, principalmente, para que se atinja a adequação diária de ingestão de cálcio, um nutriente que, dentre outras funções, é fundamental para a formação e a manutenção da 
estrutura óssea do organismo (Muniz et al., 2013).

Os resultados da última edição da Pesquisa de Orçamento Familiar 2008-2009 (POF) indicam que a ingestão de leite e derivados é maior conforme ocorre o aumento da renda familiar e do grau de escolaridade da população. Dentre os lácteos, o leite integral é a variante preferida de consumo, apresentando participação média de ingestão de 12,4%, sendo ligeiramente mais frequente entre as mulheres (13%) do que entre os homens (11,8%) (IBGE, 2010). A POF destaca também que a aquisição de leite de vaca fresco (ou cru) ainda é uma conduta adotada por uma minoria dos brasileiros, em particular àqueles da área rural, sendo que para estes a ingestão foi 211% maior do que a média nacional.

Dados da pesquisa VIGITEL - Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico – indicam que, a frequência do hábito de consumir leite integral foi de 52,9%. Ela é maior entre homens (55,7%) que entre mulheres (50,4%). Em ambos os sexos, o consumo de leite integral tendeu a diminuir com o aumento da idade. A maior frequência de consumo foi encontrada entre indivíduos com escolaridade intermediária (9 a 11 anos de estudo) e a menor frequência, em adultos com maior escolaridade de 12 ou mais anos de estudo, (Ministério da Saúde, 2014a). O consumo de leite desnatado e de laticínios com menor teor de gordura representa menos de 10% do total de ingestão e está diretamente associado ao aumento da renda. Estes produtos são usualmente recomendados como opção adequada para uma alimentação saudável, que vise à redução de ingestão de gordura saturada (IBGE, 2010).

A tarefa de educar a população acerca da importância de se adotar uma alimentação saudável e variada pode ser facilitada a partir do desenvolvimento de ferramentas como a Pirâmide Alimentar adaptada à população brasileira, representada na Figura 1. Criada em parceria com o Ministério da Saúde, ela indica de modo visual a proporcionalidade de consumo de diferentes grupos de alimentos, inclusive os lácteos (Philippi, 2013).

Figura 1. Pirâmide Alimentar adaptada à população brasileira.
O leite é considerado o principal alimento fonte de cálcio para a nutrição humana (FAO, 2013). Desta forma, caso o consumo de leite não esteja de acordo com o preconizado, há indícios de que essa inadequação se reflita também na ingestão de cálcio (Freire e Cozzolino, 2009).

A inadequação da ingestão de cálcio é observada em estudos realizados no Brasil, bem como em outros países  emergentes (Fernandéz-Ortega, 2008) e desenvolvidos (Hoppu et al., 2010), relacionando-se ao baixo consumo de leite e derivados, que são suas principais fontes alimentares. Martini et al. (2013), ao avaliarem uma amostra do Inquérito de Saúde no município de São Paulo (Estudo ISA Capital) observaram haver significante redução na média de ingestão de cálcio de acordo com o estágio de vida e aumento de acordo com o nível educacional. A menor média observada foi entre as mulheres adultas (507 ± 193 mg/dia) e a maior entre os meninos adolescentes (691± 296 mg/dia). Porém, o que se destaca nesse estudo é o achado de uma inadequação de ingestão variando entre 85% (homens adultos) e 99% (mulheres idosas).

Uma amostra probabilística composta por 6.797 adolescentes (49,7% do sexo feminino) entre dez e 18 anos de idade foi avaliada no primeiro Inquérito Nacional de Alimentação (INA) realizado pelo IBGE. Esse inquérito, incluído na POF 2008-2009, apresentou inadequação da ingestão de cálcio em quase 100% dos adolescentes estudados, independentemente do sexo e da faixa etária (Veiga et al., 2013). Já entre adultos o INA avaliou 9.974 homens com idades entre 19 e 59 anos e 11.029 mulheres da mesma faixa etária, indicando índice de inadequação em cerca de 84% e 91%, respectivamente. Resultados semelhantes foram descritos para a população idosa, em que se observou ingestão inadequada de 85,9% entre os homens e 95,8% das mulheres com idade superior aos 60 anos (IBGE, 2010; Fisberg et al., 2013).

Para indivíduos saudáveis que necessitam de 2.000 kcal/dia, de acordo com a Pirâmide Alimentar adaptada à população brasileira, recomenda-se o consumo diário de três porções de lácteos como forma de contribuir para que sejam atingidas as recomendações diárias de cálcio e proteínas para a manutenção da saúde. Um copo de leite (200 mL) corresponde a uma dessas porções. Fonte: Philippi, 2013.

2. O PERFIL NUTRICIONAL DO LEITE
Em média, o leite de vaca possui 87% de água e 13% de componentes sólidos, divididos entre cerca de 4% a 5% de carboidratos, 3% de proteínas, 3% a 4% de lipídios (em sua maior parte saturados), 0,8% de minerais e 0,1% de vitaminas (Haug et al., 2007). Além disso, este alimento possui naturalmente imunoglobulinas, hormônios, fatores de crescimento, citocinas, nucleotídeos, peptídeos, poliaminas, enzimas e outros peptídeos bioativos que apresentam interessantes efeitos à saúde (Brito et al., s/d; Pereira, 2014).

De acordo com o Nutrient Rich Foods (NRF) Index, um novo conceito elaborado pelo Guia Alimentar Americano e pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) que classifica os alimentos com base em sua composição nutricional, o leite pode ser considerado um alimento de elevada densidade nutritiva, uma vez que apresenta grande concentração de nutrientes em relação ao seu teor calórico (USDA e USDHHS, 2010; Drewnowski, 2010). O Guia Alimentar Americano (2010) prioriza o consumo de alimentos com alta densidade de nutrientes e com baixa densidade energética como parte de uma alimentação saudável.

2.1. Carboidratos
O principal carboidrato presente no leite é a lactose, compreendendo de 40 a 50 gramas por litro, ou de 8 a 10 gramas por copo (200 mL). Fisiologicamente, esse açúcar contribui para o aumento da absorção intestinal de cálcio, magnésio e fósforo presentes no leite, assim como na utilização de vitamina D pelo organismo. Esses micronutrientes são importantes no que diz respeito ao metabolismo ósseo (Hunt et al., 2009; FAO, 2013).

2.2. Lipídios
Uma das funções dos lipídios presentes no leite é a de carrear vitaminas lipossolúveis. A fração lipídica do leite é composta principalmente por triacilgliceróis (98%), além de diacilglicerol (2%), colesterol (< 0,5%), fosfolipídios (~1%) e ácidos graxos livres (0,1%). Dentre os ácidos graxos presentes no leite, 70% são saturados, com destaque para o palmítico, mirístico, esteárico e para os ácidos graxos de cadeia curta, com destaque ao butírico e capróico. Os insaturados compreendem 30%, com maior representatividade de ácido oleico, linoleico e α-linolênico (Mansson, 2008; FAO, 2013).

O leite de vaca possui naturalmente pequenas quantidades de gorduras trans, oriundas de processos metabólicos do intestino dos ruminantes. Dentre estas, destaca-se o ácido linoleico conjugado (CLA), que vem sendo associado a benefícios à saúde, como a melhora da condição cardiovascular, do sistema imunológico, além de potencial efeito anticancerígeno e hipolipomiante (Benjamin e Spener, 2009). Estudos indicam que os lácteos compreendem 70%
da quantidade de CLA consumido diariamente (Ritzenthaler et al., 2001; FAO, 2013). Normativamente, um dos principais requisitos para a classificação dos diferentes tipos de leite sustenta-se em seu teor percentual total de lipídios. Dessa forma, esse alimento é denominado integral, semidesnatado (ou parcialmente desnatado) ou desnatado.

2.3. Proteínas e peptídeos bioativos

O leite de vaca é considerado importante fonte de proteína para a alimentação humana, uma vez que contém, em média, 32 g desse nutriente por litro, ou 6,4 g por copo (200 mL) (USDA, 2011; Pereira, 2014). Além do teor significativo, essas proteínas são consideradas de alto valor biológico, contemplando todos os aminoácidos essenciais em quantidades adequadas para suprir as necessidades humanas, além de apresentarem boa digestibilidade e biodisponibilidade (FAO, 2013). O Protein Digestibility – Corrected Amino Acid Score (PDCAAS), indicador estabelecido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura e pela Organização Mundial da Saúde (FAO/WHO) para atestar a qualidade proteica, indica que as proteínas contidas no leite apresentam grau máximo de qualidade (= 1) podendo, portanto, ser comparadas à albumina, tida como padrão-ouro nesse quesito (FAO/WHO, 1991; Boye et al., 2012).

A fração proteica do leite pode ser dividida em proteínas solúveis e insolúveis. Denominadas caseínas (α-caseína, β-caseína e κ-caseína), as proteínas insolúveis representam cerca de 80% desse total. Os 20% restantes são proteínas solúveis presentes no soro do leite (whey protein) (Haug et al., 2007). As proteínas contidas no leite se diferenciam tanto por sua composição de aminoácidos como pela velocidade de absorção dos mesmos, fatores que influenciam em suas distintas funções no organismo como, por exemplo, na síntese de massa muscular (Pereira, 2014).

No processo de digestão das proteínas lácteas (hidrólise enzimática) são gerados peptídeos que apresentam funções bioativas. Eles estão relacionados a potenciais benefícios adicionais à saúde, uma vez que são associados a atividades imunomodulatórias, antiviral, antibacteriana, antifúngica, antioxidantes, anti-hipertensivas, antitrombóticas e opióide, além de favorecer a absorção de outros nutrientes como vitaminas e minerais (Mills et al., 2011; Souza et al., 2012). 

2.4. Vitaminas e minerais

O leite é amplamente reconhecido como fonte de cálcio, no entanto, outros minerais como fósforo, magnésio, zinco e selênio também estão presentes em sua composição (Gaucheron, 2011). Em relação às vitaminas, esse alimento possui tanto as lipossolúveis como a A (D e E em menores quantidades), como as hidrossolúveis, com destaque para as do complexo B. O leite de vaca, no entanto, possui baixas concentrações de ferro e folato, sendo este um dos motivos pelo qual não se recomenda o consumo desse alimento às crianças menores de um ano de idade
(Gaucheron, 2011; FAO, 2013). O teor de cálcio no leite é de aproximadamente 1.200 mg por litro ou 240 mg por copo (200 mL). Os valores recomendados de ingestão adequada de cálcio (mg/dia), assim como os limites toleráveis (mg/dia) estão dispostos na tabela abaixo.

Ingestão Dietética Recomendada (RDA) e Limite Superior Tolerável de Ingestão (UL) para o cálcio, por faixa etária e estágios de vida (mg/dia).

A alegação mais favorável para o consumo de leite se deve à sua riqueza em cálcio e ao papel desse nutriente na densidade mineral óssea (Cashman, 2002). Na dieta humana, aproximadamente, 70% do cálcio alimentar é proveniente do leite e seus derivados. Desse modo, dada as diferentes funções atribuídas ao cálcio ao organismo, principalmente por sua atividade no metabolismo ósseo, ressalta-se a importância de inserir na dieta fontes deste mineral a fim de que sejam atingidas as nec essidades diárias para este elemento (FAO, 2013). Variedades modestas de vegetais verde-escuros e de frutas secas também são consideradas boas fontes de cálcio. Elas representam cerca de 16% da ingestão total diária desse mineral contribuindo, de forma complementar às fontes lácteas, para que sejam atingidas, segundo sexo e faixa etária, as quantidades recomendadas de ingestão de cálcio (FAO, 2013).

No entanto, não se pode ignorar a relevância de fatores que influenciam na absorção e utilização do cálcio. Fatores como os fisiológicos, a composição da dieta e os componentes do próprio leite (como a presença de lactose) podem interferir na biodisponibilidade deste mineral. Alimentos ricos em ácido oxálico, como o espinafre, a batata doce e o feijão possuem menores taxas de absorção deste componente quando comparada ao leite (Weaver e Heaney, 1991). A taxa de absorção de cálcio do espinafre é de apenas 5%, enquanto que a do leite, ingerido em quantidades semelhantes, é de aproximadamente 30% (Weaver e Heaney, 1991). 

O ácido fítico, presente nos alimentos ricos em fibras, é um componente que, em altas concentrações, contribui consideravelmente para diminuir a absorção de cálcio. O mesmo acontece com as fontes concentradas de fitatos, como farelo de trigo, cereais ou grãos secos (Miller, 1989; Buzinaro et al., 2006). Assim, embora certos vegetais sejam fontes de cálcio, é preciso ingeri-los em quantidades relativamente superiores à do leite para que sejam atingidas quantidades significativas deste mineral.

Dessa forma, os alimentos vegetais considerados fontes de cálcio poderiam ser utilizados em associação com produtos de maior teor/biodisponibilidade como coadjuvantes para que as metas dietéticas adequadas de cálcio sejam atingidas entre os indivíduos que não querem ou não podem ingerir o leite de vaca por algum motivo (Buzinaro et al., 2006).

Os lácteos são considerados boas fontes alimentares de cálcio uma vez que possuem alto teor deste mineral com alta biodisponibilidade. O leite integral contém, em média, 120 mg por 100 mL de cálcio; já os iogurtes 140 mg por 100 g. O cálcio também está presente em alimentos de origem vegetal, no entanto, a média encontrada nos legumes é de apenas 35 mg por 100 g, e a das frutas cítricas, de 20 mg a 40 mg por 100 g. Assim, pode ser difícil obter a quantidade recomendada diária de cálcio sem o consumo de leite (Hands, 2000; TACO, 2011). 


Estudo de Weaver et al. (1999) descreve, em porções usuais de consumo para a população americana, a diferença entre os teores de cálcio em alimentos lácteos e de origem vegetal, indicando também a influência da taxa de absorção deste mineral na porção relativa de consumo. Os principais dados estão dispostos na Tabela 4. A exemplo do espinafre, seriam necessários o consumo de cerca de 1,4 kg deste alimento para se obter o mesmo teor de cálcio contido em 240 mL de leite.

Comparação entre o leite e as fontes absorvíveis de cálcio.
Dentre os componentes do leite, a lactose, as proteínas e os fosfolipídeos podem contribuir positivamente para a absorção intestinal do cálcio, mantendo-o na forma solúvel até que ele alcance o intestino grosso e seja absorvido por vias não saturáveis e independentes de vitamina D (FAO, 2013). Assim, a lactose em quantidades normais no leite pode ser especialmente importante para os grupos populacionais que necessitem de maior ingestão de cálcio, como no caso de crianças e idosos (Guéguen e Pointillart, 2000). Vale ressaltar que, independentemente do teor de gordura classificatório do leite – integral, semidesnatado ou desnatado – o mesmo teor de cálcio é encontrado nestas variantes.

O leite é considerado uma das principais fontes de riboflavina (vitamina B2), que atua como coenzima nos processos metabólicos da cadeia respiratória. Da mesma forma, a vitamina A, importante para a saúde ocular e na manutenção e multiplicação celular, apresenta-se com teor significativo no leite. Interessante ressaltar que, por ser uma vitamina lipossolúvel, os leites semidesnatado e desnatado possuem menor quantidade dessa substância quando comparada ao leite integral (Pereira, 2014).

A Tabela 5 indica a composição dos principais micronutrientes presentes no leite integral (por 100 mL e um copo de 200 mL) e sua representatividade percentual de acordo com a DRI - Dietary References Intake para adultos. 

Devido ao seu perfil nutricional, o leite tem sido estudado em pesquisas que versam sobre a importância de sua ingestão nas diferentes fases da vida, assim como em potenciais benefícios à saúde atribuídos a seu consumo, desde que associado a hábitos de vida saudáveis, como uma alimentação equilibrada e a prática regular de atividade física (FAO, 2013).


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