15/09/2016 às 13h14min - Atualizada em 15/09/2016 às 13h14min

Hidrólise Enzimática da Caseina

Rafaela Belchior Brasil
http://www.ppgca.evz.ufg.br/
Caseína A função biológica das caseínas na glândula mamaria é transportar cálcio, fosfato e proteína para o neonato (KRUIF & HOLT, 2003), compreendem cerca de 80% das proteínas do leite e consistem de quatro proteínas principais: αs1-, αs2-, β- e κ-caseína, representando cerca de 38%, 4 10%, 35% e 15%, respectivamente, as quais são constituídas por 199, 207, 209 e 169 resíduos de aminoácidos, com pesos moleculares de 23, 25, 24 e 19kDa, respectivamente (GOFF, 2009) e 8% de fosfato de cálcio coloidal aproximadamente (DALGLEISH, 2011).

A caseína tem atividade anfipática por possuir regiões hidrofóbicas e hidrofílicas (DE KRUIF & GRINBERG, 2002). A conformação das moléculas expõe consideravelmente os resíduos hidrofóbicos, o que resulta em forte associação entre as caseínas e as tornam insolúveis em água (GOFF, 2009). Possui sequências fosforiladas através das quais pode interagir com fosfato de cálcio, o que a torna capaz de sequestrar fosfato de cálcio, formando minúsculos agrupamentos de íons circundados por uma camada de proteína (HOLT, 2004).
 
Segundo SMYTH et al. (2004), além da função nutricional, a caseína é o meio pelo qual grande quantidade de cálcio pode passar pelo epitélio mamário sem provocar problemas de calcificação. Cerca de 95% da caseína no leite está presente na forma de partículas coloidais, conhecidas como micelas (Figura 1), que é a responsável pela estabilidade térmica do leite (FOX & BRODKORB, 2008).
 
A estrutura interna da micela de caseína é constituída predominantemente por αs1-, αs2-, β-caseína e de nanopartículas de fosfato de cálcio coloidal, enquanto que a κ-caseína está localizada preferencialmente na superfície da micela (DALGLEISH, 2011). A composição e estrutura das micelas de caseína têm sido estudadas por mais de 40 anos, e as descrições disponíveis são bastante precisas, embora ainda controversas (HORNE, 2006; QI, 2007).
 
O consenso é que a estrutura das micelas de caseína é principalmente estabilizada por interações hidrofóbicas e iônicas (HOLT et al., 2003). A caseína αs1 precipita com níveis de cálcio muito baixos, enquanto a caseína αs2 é mais sensível à precipitação pelo Ca2+, diferentemente das outras caseínas, a κ-caseína é uma glicoproteína e possui apenas um grupo fosfoserina, sendo, portanto, estável na presença de íons de cálcio e assumindo importante papel na estabilidade da micela de caseína. Por ser mais fosforilada que a κ-caseína, a β-caseína é mais sensível a altas 5 concentrações de sais de cálcio, embora seja menos sensível a precipitação com cálcio do que as caseínas α (WALSTRA, 1999). FIGURA 1– Micela de Caseína (A: submicela, B: cadeias protéicas, C: fosfato de cálcio, D: κ-caseína, E: grupo fosfato). Fonte: www.food-info.net/images/caseinmicelle.jpg
 
O interesse na caseína micelar mantém-se constante ao longo dos anos, e pesquisas sobre o assunto continuam a ser realizadas em todo o mundo, uma vez que muitas das propriedades tecnologicamente importantes do leite, por exemplo, a cor branca, a estabilidade ao calor, ao etanol e a coagulação pelo coalho, são devidos às propriedades das micelas de caseína (FOX & BRODKORB, 2008).
 
Por isso, tem havido um incentivo econômico e tecnológico para caracterizar as propriedades e elucidar sua estrutura. 6 2.2. Fatores que alteram a estabilidade das micelas de caseína 2.2.1. Hidrólise enzimática As micelas podem ser desestabilizadas por inúmeros fatores, alguns são industrialmente importantes, como a hidrólise da κ-caseína por proteases selecionadas, como os coalhos, que é explorado na produção da maior parte das variedades de queijos (FOX & BRODKORB, 2008).
 
A hidrólise enzimática da caseína é realizada por endopeptidases, que hidrolisa a ligação peptídica entre a fenilalanina (105) e a Metionina (106) da cadeia peptídica da κ-caseína, eliminando a capacidade estabilizante e gerando como produtos uma porção hidrofóbica, (para-κ-caseína) e uma hidrofílica chamada glicomacropeptídeo, ou mais apropriadamente, caseínomacropeptídeo, provocando a desestabilização da micela com consequente precipitação da caseína do leite (ORDOÑÉZ, 2005).
 
Segundo PANYAM & KILARA (1996), a hidrólise enzimática da proteína resulta em: diminuição do peso molecular, aumento do número de grupos ionizáveis e exposição de grupos hidrofóbicos que estavam protegidos na estrutura original da proteína. Leite com alta contagem de células somáticas (CCS) possui atividade enzimática elevada, o que contribui para o aumento da proteólise e lipólise, tanto antes da ordenha (no úbere) como após a ordenha, durante o armazenamento (DEETH, 2006).
 
Os lisossomos dessas células contêm enzimas proteolíticas, dentre as quais a catepsina D, que pode produzir para-κ-caseína e caseínomacropeptídeo a partir da κ-caseína e, em altas concentrações, pode causar a coagulação do leite (HURLEY et al., 2000). Com o armazenamento do leite em tanques refrigeradores e coleta da matéria-prima a cada 48 horas, aumentam as chances de multiplicação de bactérias psicrotróficas proteolíticas, que se desenvolvem em baixas temperaturas (0ºC a 15°C), produzindo enzimas termoestáveis que podem atuar sobre a κ-caseína, resultando na desestabilização do leite (NORNBERG et al., 2009).
 
Micro-organismos psicrotróficos, ao se multiplicarem no leite armazenado em baixas temperaturas, produzem enzimas proteolíticas termoestáveis (Tabela 2), a maioria das quais tem ação sobre a κ-caseína, resultando na desestabilização das micelas e coagulação do leite. A ação das proteases de psicrotróficos é distinta entre as frações protéicas do leite, sendo a κ-caseína, mais susceptível à ação dessas enzimas, enquanto que as proteínas do soro são resistentes ao ataque das proteases (GAUCHER et al., 2008).
 
Deste modo, a hidrólise da κ-caseína desestabiliza as micelas, que coagulam, e esta alteração bioquímica é associada à gelatinização do leite Ultra Alta Temperatura (UAT), que é considerado um dos principais problemas, que afetam a qualidade do leite UAT (NORNBERG et al., 2009).
 
TABELA 2 – Valores médios de contagens de bactérias psicrotróficas e atividade proteolítica em leite cru refrigerado obtido de dois laticínios do Estado do Rio Grande do Sul. Laticínioa n PsicrotróficosTotais (Log UFC/mL)b Atividade Proteolítica (U/mL)c L1 50 6,43 ± 0,35 12,3 ± 9,1 L2 A 20 6,36 ± 0,78 4,3 ± 7,3 L3 B 20 6,24 ± 0,63 3,3 ± 5,2 a Foram coletadas 50 amostras do silo de armazenamento do laticínio L1, 20 amostras do tanque isotérmico de caminhões (A) e 20 amostras do silo de armazenamento (B) do estabelecimento L2. bContagens de psicrotróficos determinadas em placas de PCA incubadas por 10 dias, à 7°C. cAtividade proteolítica determinada pela hidrólise de gelatina solúvel. Fonte: NORNBERG et al. (2009)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 62, de 29 DE DEZEMBRO DE 2011. Diário Oficial da União, 30 de dezembro de 2011. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/33395065/dou-secao-1-30-12-2011-pg-6. Acesso em: 10 de Agosto de 2013.

BIEGER, A.; RINALDI, R. N. Reflexos do reaproveitamento de soro de leite na cadeia produtiva de leite do oeste do Paraná. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 47., 2009, Porto Alegre. Anais eletrônicos... [CDROM], Porto Alegre, 2009.

BITTANTE, G.; PENASA, M.; CECCHINATO, A. Invited review: Genetics and modeling of milk coagulation properties. Journal of Dairy Science, United States, v. 95, n. 12, p. 6843–6870, 2012. CALDEIRA, L. A.; FERRÃO, S. P. B.; FERNANDES, S. A. A.; MAGNAVITA, A. P. A.; SANTOS, T. D. R. Desenvolvimento de bebida láctea sabor morango utilizando diferentes níveis de iogurte e soro lácteo obtidos com leite de búfala. Ciência Rural, Santa Maria, v. 40, n.10, p. 2193-2198, 2010.

DALGLEISH, D. G. On the structural models of bovine casein micelles – Review and possible improvements. Soft Matter, v. 7, p. 2265–2272, 2011. DE KRUIF, C. G.; GRINBERG, V. Y. Micellisation of β-casein. Colloids and Surfaces A: Physicochemical and Engineering Aspects, v. 210, p. 183-190, 2002. DE KRUIF, C. G. HOLT, C. Casein Micelle Structure, Functions and Interactions Advanced Dairy Chemistry, Volume 1, Proteins, Third Edition A, Chapter 5 Ed. P. F. Fox and P. L. H. McSweeney Kluwer Academic, New York, 2003. DE KRUIF, C. G.; HUPPERTZ, T.; URBAN V. S.; PETUKHOV A. V. Casein micelles and their internal structure. Advances in Colloid and Interface Science, v. 171–172, p. 36–52, 2012. DE WIT, J. N. Nutritional and functional characteristics if whey proteins in foods products. Journal of Dairy Science, United States, v. 81, p. 597-608, 1998. DEETH, H. C. Lipoprotein lipase and lipolysis in milk. International Dairy Journal, v. 16, p. 555–562, 2006. FARRELL JR, H. M.; MALIN, E. L.; BROWN, E. M.; QI, P. X. Casein micelle estructure: What can be learned from milk synthesis and structural biology? Current Opinion in Colloid & Interface Science, v. 11, p. 135-147, 2006. 

FOX, P. F.; BRODKORB, A. The casein micelle: Historical aspects, current concepts and significance. International Dairy Journal, Canada, v. 18, p. 677- 684, 2008.

FOX, P. F.; MCSWEENEY, P. L. H. Dairy Chemistry and Biochemistry. Blackie Academic & Professional, London, 1998. GAUCHER, I.; MOLLÉ, D.; GANGNAIRE, V.; GAUCHERON, F. Effects of storage temperature on physico-chemical characteristics of semi-skimmed UHT milk. Food Hidrocolloids, v. 22, p. 130-143, 2008.

GLANTZ, M.; DEVOLD, T. G.; VEGARUD, G. E.; LINDMARK MÅNSSON, H.; STÅLHAMMAR, H.; PAULSSON, M. Importance of casein micelle size and milk composition for milk gelation. Journal of Dairy Science, United States, v. 93, p. 1444–1451, 2010. GOFF, H. D. University of Guelph. Dairy Science and Technology. [online], 2009. Disponível em: https://www.uoguelph.ca/foodscience/dairy-science-andtechnology/dairy-chemistry-and-physics. Acesso em: 10 de Agosto de 2013. HOLT, C. An equilibrium thermodynamic model of the sequestration of calcium phosphate by casein micelles and its application to the calculation of the partition of salts in milk. European Biophysics Journal, Germany, v. 33, p. 421-434, 2004. HOLT, C.; DE KRUIF, C. G.; TUINIER, R.; TIMMINS, P. A. Substructure of bovine casein micelles by small-angle X-ray and neutron scattering. Colloids and Surfaces A: Physicochemical and Engineering Aspects, v. 213, p. 275–284, 2003. HORNE, D. S. Casein micelle structure: models and muddles. Current Opinion in Colloid & Interface Science, v.11, p.148–153, 2006. HURLEY, M. J.; LARSEN, L. B.; KELLY, A. L.; MCSWEENEY, P. L. H. The milk acid proteinase cathepsin D: a review. International Dairy Journal, v. 10, p. 673-681, 2000. INTERNATIONAL DAIRY FEDERATION. The world dairy situation. Bulletin 451/2011. International Dairy Federation, Brussels, Belgium 2011. LIVNEY, Y. D. Milk proteins as vehicles for bioactives. Current Opinion in Colloid & Interfaces Science, Israel, v. 15, p. 73–83, 2010. LÖNNERDAL, B. Nutritional and physiologic significance of human milk proteins. The American Journal of Clinical Nutrition, v. 77, p.1537-43, 2003. MARKUS, C. R.; OLIVER, B.; DE HAAN, E. H. F. Whey Protein rich in alfalactoalbumin increases the ratio of plasma tryptophan to the sum of the other large neutral amino acids and improves cognitive performance in stress- 14 vulnerable subjects. The American Journal of Clinical Nutrition, v. 75, p. 1051-6, 2002. MARQUES, L. T.; ZANELA, M. B.; RIBEIRO, M. E. R.; STUMPF JÚNIOR, W.; FISCHER, V. Ocorrência do leite instável ao álcool 76% e não ácido (LINA) e efeitos sobre os aspectos físico-químicos do leite. Revista Brasileira de Agrociência, Pelotas, v. 13, p. 91-97, 2007. MIKHEEVA, L. M.; GRINBERG, N. V.; GRINBERG, V. Y.; KHOKHLOV, A. R.; DE KRUIF, C. G. Thermodynamics of micellization of bovine α-casein studied by high-sensitivity differential scanning calorimetry. Langmuir, v. 19, p. 2913- 2921, 2003. NORNBERG, M. F. B. L.; TONDO, E. C.; BRANDELLI, A. Bactérias psicrotróficas e atividade proteolítica no leite cru refrigerado. Acta Scientiae Veterinariae, v. 37, p. 157-163, 2009. O’CONNELL, J. E.; FOX, P. F. The two-stage coagulation of milk proteins in the minimum of the heat coagulation time-pH profile of milk: effect of casein micelle size. Journal of Dairy Science, United States, v. 83, p. 378-386, 2000.

O’CONNELL, J. E.; KELLY, A. L.; FOX, P. F.; DE KRUIF, K. G. Mechanism for the ethanol dependent heat-induced dissociation of casein micelles. Journal of Agricultural and Food Chemistry, v. 49, p. 4424-4428, 2001.

O’CONNELL, J. E.; SARACINO, P.; HUPPERTZ, T.; UNIAKE, T.; DE KRUIF, C. G.; KELLY, A. L.; FOX, P. F. Influence of ethanol on the rennet- induced coagulation of milk. Journal of Dairy Research, v. 73, p. 312-317, 2006.

ORDOÑÉZ, J. A. Tecnologia de alimentos: Componentes dos alimentos e processos. Porto Alegre: Artmed, v. 1, p. 294, 2005. PANYAM, D., KILARA, A. Enchanting the functionality of food proteins by enzymatic modification. Trends in Food Science & Technology International, Cambridge, v.7, n.4, p.120-125, 1996.

PELEGRINI, D. H. G.; CARRASQUEIRA, R. L. Aproveitamento do soro do leite no enriquecimento nutricional de bebidas. Brazylian Journal Food Technology, v.62, n.6, p.1004-11, 2008. PHADUNGATH, C. Casein micelle structure: a concise review. Songklanakarin Journal Science Technology, v. 27, p. 201-212, 2005.

PHILIPPE, M.; GAUCHERON, F.; LE GRAET, Y.; MICHEL, F.; GAREM, A. Physicochemical characterization of calcium-supplemented skim milk. Le Lait, Dairy Science and Technology, v. 83 p. 45-59, 2003. QI, P. X. Casein micelle structure: the past and the present. Le Lait, Dairy Science and Technology, v.87, p.363–383, 2007. 15 SGARBIERI, V. C. Propriedades fisiológicas-funcionais das proteínas do soro de leite. Revista de Nutrição, Campinas, v. 17, p. 397–409, 2004.

SGARBIERI, V. C. Revisão: Propriedades Estruturais e Físico Químicas das Proteínas do Leite. Brazilian Journal of Food Technology, Campinas, v.8, p. 43-56, 2005.

SHANNON, L. K.; CHATTERTON, D.; NIELSEN, K.; LÖNNERDAL, B. Glycomacropeptide and alfa- lactoalbumin supplementation of infant formula affects growth and nutritional status in infant rhesus monkeys. The American Journal of Clinical Nutrition, v. 77, p. 1261-8, 2003.

SMYTH, E.; CLEGG, R. A.; HOLT, C. A biological perspective on the structure and function of caseins and casein micelles. International Journal of Dairy Technology, v. 57, p. 121-126, 2004.

SILVA, L. C. C.; BELOTI, V.; TAMANINI, R.; YAMADA, A. K.; GIOMBELLI, C. J.; SILVA, M. R. Estabilidade térmica da caseína e estabilidade ao álcool 68, 72, 75 e 78%, em leite bovino. Revista do Instituto de Laticínios “Cândido Tostes”, v. 67, p. 55-60, 2012. SINGH H. Heat stability of milk. International Journal of Dairy Technolog, v. 57, 2004. VIOTTO, W. H.; MACHADO, L. M. P. Estudo sobre a cristalização da lactose em doce de leite pastoso elaborado com diferentes concentrações de soro de queijo e amido de milho modificado. Revista do Instituto de Laticínios CândidoTostes, v.62, n.4, p.16-21, 2007. WALSTRA, P. Casein sub-micelles: do they exist? International Dairy Journal, v. 9, p. 189-192, 1999. YE, A. Functional properties of milk protein concentrates: Emulsifying properties, adsorption and stability of emulsions. International Dairy Journal, v. 21, p. 14–20, 2011.

YE, R.; HARTE, F. Casein maps: effect of ethanol, pH, temperature, and CaCl2 on the particle size of reconstituted casein micelles. Journal of Dairy Science, United States, v. 96, p. 799–805, 2013.

ZAVAREZE, E. R.; MORAES, K. S.; SALASMELLADO, M. M. Qualidade tecnológica e sensorial de bolos elaborados com soro de leite. Ciência e Tecnologia de Alimentos, v. 30, n.1, p. 102-106, 2010.


Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »
Fale pelo Whatsapp
Atendimento
Precisa de ajuda? fale conosco pelo Whatsapp